1. A GRANDE TRANSIÇÃO
No ano 313, ocorreu um evento extraordinário que mudou drasticamente os rumos da história da igreja. Esse evento foi o decidido apoio do imperador Constantino ao cristianismo. Constantino havia começado a governar em 308, mas só em 312 ele conseguiu vencer o seu rival Maxêncio, na batalha da Ponte Mílvia, perto de Roma, tornando-se o único imperador da parte ocidental do império. Pouco antes da batalha ele tivera o famoso sonho em que viu o lábaro (as duas primeiras letras sobrepostas do nome de Cristo em grego: CR = chi-rho) e as palavras “Com este sinal vencerás”. No ano seguinte, ele e Licínio, o dirigente da seção oriental do império, se encontraram e promulgaram um decreto que ficou conhecido como Edito de Milão. Esse famoso decreto legalizou o cristianismo, fez cessar as perseguições e deu ampla liberdade religiosa a todas as pessoas.
Constantino passou a fazer generosas concessões à igreja e seus líderes, em termos de doação de propriedades, isenção de tributos, cargos públicos e outros privilégios. Um importante cronista dessa época foi Eusébio de Cesareia, que escreveu História Eclesiástica (300-325), a primeira história da igreja. Em troca dos benefícios concedidos à igreja, Constantino sentiu-se no direito de intervir em questões eclesiásticas, como no caso da controvérsia ariana, que será vista adiante. Começou assim o complexo e por vezes tumultuado relacionamento entre a igreja e o estado que dura, de uma forma ou de outra, até os nossos dias.
Na segunda metade do século 4º, o imperador Juliano (361-363), cognominado “o apóstata” por ter abandonado a fé cristã, fez a última tentativa de restaurar o antigo paganismo. Duas décadas depois, o imperador Teodósio I (379-395), um espanhol, tornou o cristianismo “católico” a religião oficial do Império Romano (ano 380). No século seguinte, o Império Romano Ocidental (latino) entrou em declínio acentuado. No ano 476, o general germânico Odoacro destronou Rômulo Augústulo, o último imperador do ocidente. No oriente grego, o império continuou a existir por muitos séculos, tendo sua capital em Constantinopla ou Bizâncio e sendo conhecido como Império Bizantino. No 6º século, um notável líder desse império foi Justiniano (527-565).
2. A CONTROVÉRSIA ARIANA (4° SÉCULO)
Por volta do ano 318, Ário, um presbítero de Alexandria (Egito), começou a ensinar que Cristo, o Filho de Deus, foi criado pelo Pai antes da existência do mundo, sendo, portanto, inferior ao Pai, mas superior aos seres humanos. Esse ensino gerou uma enorme controvérsia em toda a igreja. Constantino, temendo pela estabilidade política do império, convocou um concílio de bispos para resolver essa e outras questões. O Concílio de Nicéia, na Ásia Menor, reuniu-se em 325, sendo presidido pelo próprio imperador. Depois de muitas discussões, o concílio aprovou um documento, o Credo de Niceia, que afirmou a divindade de Jesus Cristo e condenou as posições arianas. Uma palavra importante e controvertida dessa declaração foi homoousios, isto é, “consubstancial”. Cristo partilha da mesma substância que o Pai. Estava assim definida a doutrina da trindade, ou seja: o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três “pessoas” distintas que compartilham da mesma “substância” ou essência divina, sendo, portanto, um só Deus.
Mais tarde, sempre por razões políticas, Constantino e seus filhos apoiaram a posição condenada, o arianismo, gerando grandes problemas para a igreja, até que, como foi visto acima, o imperador Teodósio oficializou o cristianismo niceno, trinitário. No ano seguinte, Teodósio convocou o Concílio de Constantinopla (381), que reafirmou plenamente as decisões do Concílio de Niceia. Esse concílio aprovou um novo credo que expandiu as declarações de Niceia e afirmou explicitamente a divindade do Espírito Santo (Credo Niceno-Contantinopolitano). Na grande luta em defesa das decisões de Niceia, destacaram-se quatro importantes pais da igreja oriental: Atanásio (328-373), bispo de Alexandria, que escreveu as obras Sobre a Encarnação do Verbo e Discursos Contra os Arianos (e foi exilado cinco vezes por causa de suas posições), e três bispos e teólogos da Ásia Menor, a futura Turquia, conhecidos como “os três capadócios”: Basílio de Cesaréia (†379), Gregório de Nazianzo (†c.389) e Gregório de Nissa (†c.394).
3. AS CONTROVÉRSIAS CRISTOLÓGICAS (5° SÉCULO)
No século 5º foi discutido um novo problema teológico: como se relacionam as duas naturezas de Cristo, a divina e a humana. Havia duas posições divergentes. Uma delas era representada pela Escola de Alexandria, surgida no terceiro século. Os alexandrinos eram adeptos do método alegórico de interpretação das Escrituras, procurando ver no texto significados ocultos, místicos. No que diz respeito a Cristo, entendiam que o Verbo uniu-se à carne, sendo uma pessoa plenamente integrada. Acentuavam, pois, a divindade de Cristo, em detrimento da sua humanidade. Desse raciocínio, resultaram duas posições que foram condenadas pela igreja. Apolinário de Laodicéia afirmava que Jesus era uma combinação de alma divina (ou Logos = Verbo) e corpo humano. Eutiques, um monge de Constantinopla, afirmou que as duas naturezas fundiram-se em uma só, a divina (daí o nome dessa posição: monofisismo = uma só natureza).
Do outro lado estava a Escola de Antioquia, surgida no século 4º. Essa escola dava mais ênfase ao sentido literal da Escritura, evitando a interpretação alegórica. Afirmava que Cristo tinha uma plena natureza divina e uma plena natureza humana. O problema estava na tendência de dividir em duas a pessoa de Cristo. A posição clássica foi defendida por Nestório, patriarca de Constantinopla (428-431). Ele afirmava com tanta ênfase a distinção das duas naturezas que dava a impressão de ensinar que havia duas pessoas em Cristo (divina e humana). Por isso, enquanto os alexandrinos afirmavam que Maria era theotokos = “portadora de Deus”, Nestório dizia que ela era somente christotokos = “portadora ou mãe de Cristo”.
Nestório encontrou um adversário extremamente agressivo na pessoa de Cirilo, patriarca de Alexandria (412-444). Para tentar resolver a disputa, foi convocado o Concílio de Éfeso (431). As posições eram tão antagônicas que os dois grupos tiveram de reunir-se separadamente e excomungaram um ao outro. Finalmente, o imperador Teodósio II interveio, tomou o partido de Cirilo e baniu Nestório. Vinte anos depois, o imperador Marciano convocou o importante Concílio de Calcedônia (451) para resolver a questão de uma vez por todas. A célebre Definição de Calcedônia afirmou a plena divindade e a plena humanidade de Cristo, duas naturezas em uma só pessoa divino-humana. Contribuiu para essa decisão um documento enviado pelo bispo de Roma, Leão I (440-461), conhecido como o Tomo de Leão. Adotando uma posição intermediária entre Alexandria e Antioquia, o Concílio de Calcedônia condenou formalmente as três posições mencionadas acima: apolinarismo, eutiquianismo e nestorianismo.
4. INVASÕES GERMÂNICAS E MISSÕES
No século 4º, vários povos que habitavam a Europa oriental começaram a invadir o Império Romano Ocidental. Em 378, os visigodos derrotaram e mataram o imperador Valêncio. Poucas décadas depois, sob o comando de Alarico, saquearam a própria cidade de Roma (410). Também invadiram a Gália e o sul da Espanha. Os famigerados vândalos invadiram a Gália, a Espanha e o norte da África, e saquearam Roma em 455. Outros invasores foram os hunos, vindos das estepes da Ásia central e comandados pelo célebre Átila, “o flagelo de Deus”. Também foram importantes as ações dos anglos e saxões, que invadiram a Britânia (Inglaterra) no ano 449. Esses e outros povos eventualmente deram origem às modernas nações europeias.
Alguns desses povos já haviam sido cristianizados quando invadiram o Império Romano. Foi o caso dos godos do baixo Danúbio ou visigodos, que foram evangelizados por Ulfilas (c. 311-383), cuja mãe era daquele povo. Ulfilas traduziu as Escrituras para a língua gótica e, sendo um adepto do arianismo, transmitiu essa concepção da fé aos visigodos. Na França central, um dos primeiros missionários foi Martinho de Tours (†397) e a Irlanda foi evangelizada por Patrício (c.415-c.493), a partir de 460, marcando o início do cristianismo celta. A primeira nação germânica a abraçar o cristianismo católico, ou seja, trinitário, foram os francos, mediante a conversão do rei Clóvis em 496. Sua esposa, Clotilde, já era uma cristã. Até 590, a maior parte das tribos germânicas havia deixado o arianismo em favor do catolicismo. Na Escócia, foi muito atuante o irlandês Columba(c.521-597), que, acompanhado de monges celtas, fundou um influente centro missionário na pequena ilha de Iona (557). Esse centro enviou missionários à Escócia, Inglaterra, França, Alemanha e Suíça.
5. QUATRO GRANDES VULTOS
Os séculos 4º e 5º são chamados a “idade de ouro” dos pais da igreja. No final do século 4º e início do 5º viveram quatro líderes e escritores cristãos especialmente importantes. Dois deles foram notáveis pregadores, um no ocidente latino e o outro no oriente grego. O primeiro foi Ambrósio, bispo de Milão (374-397), no norte da Itália, que ficou conhecido pela maneira corajosa como enfrentou o imperador Teodósio por causa de um massacre ocorrido em Tessalônica. O outro foi o não menos ousado João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla (397-407), o maior pregador da igreja antiga e por isso mesmo apelidado de Crisóstomo, ou seja, “boca de ouro”. Por causa de sua pregação profética, foi banido pela imperatriz Eudóxia e morreu no exílio.
Os outros dois vultos eminentes do período foram Jerônimo e Agostinho. Jerônimo (331-420) foi o maior erudito da igreja ocidental antiga. Depois de muitos estudos no Oriente, tornou-se secretário do papa Dâmaso, que o incentivou a fazer uma nova tradução da Bíblia para o latim. Passou os últimos 35 anos de sua vida num mosteiro em Belém, onde escreveu seus comentários bíblicos e concluiu a tradução da Vulgata Latina, a Bíblia oficial da Igreja Católica. Agostinho (354-430) converteu-se em Milão em 386, influenciado pelas pregações de Ambrósio, e tornou-se bispo de Hipona, no norte da África, em 395. É considerado o maior dos pais da igreja e muito influenciou os reformadores protestantes. Das 94 obras que escreveu, as mais conhecidas são as Confissões e A Cidade de Deus. Agostinho lutou fortemente contra os cismáticos donatistas e contra Pelágio, um monge inglês que afirmava que o homem nasce essencialmente bom e é capaz de fazer o bem sem o auxílio de Deus. O bispo de Hipona, ao contrário, afirmou que o ser humano está morto no pecado e, portanto, a salvação provém inteiramente da graça de Deus, sendo concedida apenas aos eleitos.
6. A VIDA CRISTÃ
No período antigo surgiu uma instituição que haveria de se tornar imensamente importante na história posterior da igreja: o monasticismo. Desde os primeiros séculos, muitas pessoas sentiram a necessidade de viver uma vida de renúncia e total consagração a Deus, inspiradas por passagens do Novo Testamento como a história do moço rico (Mateus 19.21; ver também Lucas 14.33). Os primeiros monges surgiram no terceiro século e viviam sós nos desertos. Os mais conhecidos desses antigos “eremitas” (de éremos = deserto) ou anacoretas (de anachorein = afastar-se) foram Antônio ou Antão, no Egito (†356), e Simeão Estilita, na Síria (†459). Este último foi chamado de estilita porque viveu trinta anos em cima de uma coluna (em grego, stylos).
Ao mesmo tempo, surgiu uma nova modalidade, o monasticismo comunitário, que veio a tornar-se predominante tanto no Oriente como no Ocidente. Esses monges eram chamados de cenobitas (de koinós bíos = vida comum). O primeiro cenóbio foi fundado por Pacômio (†346), no Egito. Dois grandes líderes monásticos foram, no Oriente, Basílio de Cesaréia, e no Ocidente, Bento de Núrsia (c.480-c.550). Este último escreveu a famosa regra beneditina, que por séculos orientou a vida dos mosteiros. A regra disciplinava a vida diária dos monges em torno de três atividades: devoção, estudo e trabalho. Muitos dos personagens que já vimos foram monges, submetendo-se aos três votos clássicos de pobreza, castidade e obediência.
No período que está sendo estudado, o culto cristão tornou-se fortemente estruturado, com liturgias e orações formais. Deu-se grande ênfase à música, com coros, cânticos e antífonas. No século 4º, foi composto o Te Deum (“A ti, ó Deus”), um dos hinos litúrgicos mais conhecidos. O culto tornou-se solene e impressionante e também a arquitetura religiosa, com o surgimento das majestosas basílicas. Intensificou-se o culto aos santos, os antigos mártires da igreja, bem como a Maria, especialmente após as controvérsias cristológicas, que deram ênfase a ela como theotokos, a portadora ou mãe de Deus. Também se popularizaram as peregrinações a lugares considerados santos e a veneração de relíquias. Mais tarde, todas essas posições seriam questionadas pela Reforma do século 16.
7. ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA
Esse período testemunhou o crescente fortalecimento dos bispos e dos concílios em que eles se reuniam. Os bispos das capitais provinciais passaram a ser chamados de metropolitanos (arcebispos). Os bispos das igrejas mais importantes e antigas – Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém – receberam o título de patriarcas. Outra característica marcante do período foi a afirmação da supremacia dos bispos de Roma. Isso resultou de um longo processo em que esses bispos foram fazendo reivindicações cada vez mais ousadas sobre sua autoridade.
Os principais fatores que contribuíram para o surgimento do papado foram: a insistência no primado de Pedro (Mateus 16.17-19), que teria sido o primeiro bispo de Roma, e a alegação de que essa autoridade foi transmitida aos seus sucessores; o suposto martírio de Pedro e Paulo em Roma; a importância da cidade e da igreja de Roma; as declarações de governantes em apoio às pretensões papais; a rápida aceitação dessa autoridade no Ocidente, devido à falta de concorrentes; o declínio do Império do Ocidente, tornando a igreja a instituição mais importante da sociedade; a habilidade de muitos bispos de Roma como teólogos, administradores e promotores da obra missionária. O fato é que no século 5º houve a aceitação geral do primado de Pedro, sendo Leão I (440-461) considerado o primeiro papa no sentido pleno da palavra. Essas reivindicações encontraram forte resistência no Oriente, sendo um dos fatores da futura separação entre as igrejas oriental (ortodoxa) e ocidental (católica).
IMPLICAÇÕES PRÁTICAS
Embora o texto desta seção não fale muito sobre o assunto, uma das características da igreja antiga foi o profundo interesse pelas Escrituras. Pais da igreja como Irineu, Orígenes, Jerônimo e Agostinho dedicaram as suas vidas ao estudo reverente da Palavra de Deus. Teodoro de Mopsuéstia (c.350-428), da Escola de Antioquia, é considerado o maior exegeta da igreja antiga. João Crisóstomo destacou-se por suas pregações profundamente bíblicas, expositivas. Outros ainda, como foi visto, dedicaram-se à tarefa de traduzir as Escrituras. Que o seu exemplo nos estimule a valorizar a Palavra e interpretá-la de modo equilibrado.
Ao estudar este período, podemos ficar perplexos diante do surgimento de crenças e práticas que não nos parecem corretas. Ficamos nos perguntando por que Deus permitiu que as coisas tomassem certos rumos. A história da igreja é importante porque mostra os acertos e os erros da igreja em sua caminhada no mundo. Antes de qualquer juízo, precisamos entender como certas coisas aconteceram, mesmo que não concordemos com elas. Por outro lado, seria um equívoco nos concentrar nos desvios e esquecer os elementos positivos. Os reformadores protestantes do século 16 souberam valorizar as contribuições positivas da igreja antiga.