IPB: História e Identidade
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E. C. Pereira: A Religião Cristã em suas Relações com a Escravidão (1886)

Esse famoso escrito do Rev. Eduardo Carlos Pereira, na época ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil, foi o 8º texto publicado pela Sociedade Brasileira de Tratados Evangélicos, fundada em setembro de 1883, da qual esse pastor foi o principal idealizador. O tratado foi impresso na Tipografia a Vapor de Jorge Seckler & Co., em São Paulo.

I. UMA CENA DA ESCRAVIDÃO

    Clama não cesse, levanta como trombeta a tua voz e anuncia ao meu povo as suas maldades, e à casa de Jacó os seus pecados (Is 58.1).

    Entre as recordações do meu passado, uma sobressai, como nota discordante em saudosa harmonia.

    Era eu iniciado em uma fazenda, no segredo das primeiras letras.

    Um dia, um ruído partindo de um quarto fechado, na extremidade do terreiro, chamou minha atenção. Aproximei-me e escutei. Gemidos surdos e suplicantes distiguiam-se no meio do som de algumas coisas flexíveis que caiam compassadas sobre um corpo mole. De vez em quando, uma voz ameaçadora respondia às súplicas humildes de alguma vítima. Conheci a voz e compreendi os gemidos: Ali dava-se uma dessas cenas da escravidão, monstruosas e dilacerantes, que tem de mil fazendas chamado terríveis maldições sobre este desventurado país.

    Sentia bater-me revoltado o coração; mas que podia eu fazer, se não derramar uma lágrima ineficaz de indignação e piedade pelo pobre cativo?

    Sofre mísero escravo, já que cometeste o crime de nascer nos climas ardentes da África, e já que perpetraste um outro não menos grave – de abandonar o eito e o azorrague do feitor, para procurar no mato a liberdade do foragido! Desgraçado que não contavas com a fome para arrancar dos bosques sombrios, nem com o estigma de tua cor para te denunciar aos caboclos ávidos da recompensa do teu senhor! Paga, pois, com o teu sangue os prejuízos que deste. Sofre, geme e morre, infeliz, que o dia da redenção não rairá para ti! Morre porque neste país civilizado e cristão, só a morte pode suspender o braço automático de teu parceiro, antes que se cumpra a novena fatal determinada pela justiça da fazenda! Entretanto, console-te e console-nos a crença de que os teus gemidos e o teu sangue têm sido recolhidos no cálice da ira da reta e tremenda justiça.

    Lembro-me que no dia seguinte, ou dias depois, achei o quarto aberto e entrei. Oh! Miséria! Ali estava pendurado um instrumento horrendo: um pau curto de um centímetro de diâmetro, mais ou menos, servia de cabo a algumas correias de couro cru, finas e duras, todas ensanguentadas nas extremidades e salpicadas no resto. Uma escada no chão indicava no quarto o lugar do suplício.

    Saí. O dia era esplêndido e os sorrisos de um céu azul varreriam, por certo, bem depressa de meu espírito pueril as dolorosas impressões, se um novo espetáculo não as viesse acentuar profundamente.

    Fui ao quintal, e lá, à sombra de uma laranjeira, vi deitado de bruço, um pobre negro, que, se não me falha a memória, tinha uma grande massa de ferro cingindo-lhe os tornozelos. Acheguei-me: era a vítima desventurada que ali procurava um abrigo contra os ardores do sol. Enxotei as moscas que o perseguiam, e – espetáculo repugnante – através do trapo que mal cobria-lhe as nádegas, pude perceber uma chaga viva, funda e purulenta!

    Oh! Maldita instituição, que desperta no homem o instinto da fera, abeirando os mais comezinhos sentimentos de humanidade!

    Quase vinte anos são passados, e onde estará esse infeliz?

    A morte provavelmente ter-lhe-á dado repouso e hospitalidade que lhe negaram peitos humanos. Ou talvez ainda arraste miseravelmente para o eito um resto de carne que sobrou ao bacalhau e ao relho do feitor, resto vergonhosamente disputado pela voracidade do escravismo na oposição à libertação dos sexagenários.

    E, entretanto, quantos desgraçados como esse, privados violentamente de seus direitos naturais, têm sido, durante três séculos, covardemente explorados, cruelmente martirizados e mortos pela civilização humanitária de nosso culto Império?

    Tremenda realização teve a maldição de Canaã, mas ai daqueles por quem se cumpriu e se cumpre a maldição de Noé!

    Terríveis eram também as profecias sobre o Filho do Homem, mas ai do Iscariotes que o vendeu, ai do povo deicida que as cumpriu!

    Pois bem, que após tantos e tão grandes sofrimentos, os gemidos e gritos de dor das vítimas de nossa cobiça e malvadez ecoem, como a voz pavorosa do remorso aos ouvidos da geração atual! Que o sangue e as carnes despedaçadas dos míseros cativos, sejam espectros que venham constantemente perturbar-lhe o sono criminoso de um indiferentismo egoísta e covarde!

    É mister que a imprensa clame e não cesse, que levante como trombeta a sua voz e denuncie ao povo a monstruosidade deste pecado nacional, que já não tem para o atenuar a ignorância dos séculos de trevas.

    É mister que se diga com franqueza aos senhores de escravos o quanto há de ofensivo às leis de Deus e da humanidade, o quanto há de vil na vergonhosa exploração de uma raça que tem tanto direito, como qualquer outra, à liberdade que Deus lhe deu.

    Clamarei e denunciarei aos novos filhos de Israel esse crime que mancha ainda o seio das Igrejas evangélicas do Brasil, com grandíssimo detrimento do Evangelho.

    E enquanto a justiça falar por minha boca, minha voz terá a mesma autoridade que a do Profeta, porque a voz da justiça é a voz de Jeová.

    II. A ESCRAVIDÃO PERANTE O VELHO TESTAMENTO

    Lembra-te que também tu foste escravo na terra do Egito e que o Senhor teu Deus te libertou, e por isso eu te ordeno agora este preceito (Dt 15.15).

                Quando examinamos a escravidão à luz da razão e dos nobres sentimentos do coração, quando a consideramos em suas desastrosas consequências sociais, podemos afirmar a priori com toda a segurança que ela não tem, não pode ter, a sanção divina.

                Se não é uma mentira o sentimento do justo e do bom, o mais nobre apanágio com que nos dotara o Criador, então não pode a escravidão apoiar-se nem no Velho e nem no Novo Testamento, que contêm a sublime revelação desse grande Criador, cuja justiça infinita e infinita misericórdia se refletem nas almas criadas à sua imagem e semelhança.

    Nada, porém, obscurece tanto o entendimento como os interesses mal-entendidos desta vida. Não é para estranhar, senão para lamentar profundamente, que muitos cristãos cometam o sacrilégio de defender sua propriedade escrava com a Palavra do Deus de justiça e de amor.

                É tempo de abrir os olhos desses irmãos, encarando a escravidão à luz de ambos os Testamentos. Examiná-la-ei hoje perante o Velho; em artigo subsequente vê-la-emos à luz do Novo.

    Do estudo do Pentateuco inferimos que uma espécie de escravidão era tolerada pela legislação mosaica; porém, esse mesmo estudo nos revela que o seu caráter era muito diverso do da escravidão que infelizmente reina em nosso país.

    Pondo por agora de parte essa ordem de considerações, pergunto: Porventura o Velho Testamento instituiu ou mesmo aprovou essa escravidão branda, que não podia, entretanto, deixar de ter certo grau de injustiça e opressão? Respondo – não, apenas tolerou.

    O Divino Mestre reivindicando a justiça de Deus nos patenteia a razão dessa tolerância.

    Tentaram os fariseus um dia pô-lo em colisão com Moisés, sobre o divórcio. Tendo perguntado se era lícito repudiar-se a mulher, por qualquer causa, e sendo-lhes respondido que não, replicaram: Por que então Moisés o permitiu?

    Por causa da dureza dos vossos corações; mas ao princípio não era assim, retrucou-lhes o Senhor (Mt 19.8).

    Esta resposta é razão que faz ressaltar a sabedoria e bondade de Deus, explica a tolerância desse brando cativeiro entre os judeus, ao mesmo tempo que ressalva a Justiça Divina.

    Ao princípio não foi assim. Deus não instituiu o divórcio por qualquer causa: tolerou-o, preparando o povo para o restabelecimento da pureza e justiça primitivas. Assim da escravidão em qualquer grau. Deus não criou um negro a fim de cultivar para Adão e Eva o jardim do Éden, mas eles o cultivaram com suas próprias mãos (Gn 2.6,7,18). Depois, quando a terra produziu espinhos e abrolhos, não disse o Senhor: Comerás o teu pão no suor do rosto do teu escravo; mas ordenou: Comerás o teu pão no suor do TEU rosto (Gn 3.18,19).

    Esta é a ordem primitiva, por Deus instituída. Porém, os homens, à medida que se multiplicavam sobre a terra, cresciam na depravação de sua natureza decaída. As trevas de seu entendimento tornavam-se cada vez mais negras e apagavam na sua alma os vestígios da imagem primitiva de justiça e santidade (Ef 4.24). O orgulho, a cobiça e a indolência foram arraigando profundamente a escravidão nos costumes de todos os povos, como a lascívia foi introduzindo a poligamia na vida íntima de todas as sociedades.

    Desairragar essas instituições abomináveis sem preparar o povo, sem elevar a sociedade à compreensão da justiça e santidade, era deitar remendo de pano novo em vestido velho, ou despejar vinho novo em velhos odres.

    Dizer a esses homens obscurecidos que eles não tinham o direito de matar ou escravizar os prisioneiros feitos com o valor de seu arco ou de sua espada, em guerra franca com os seus inimigos, era dizer-lhes uma coisa absolutamente incompreensível, inteiramente absurda.

    Diante da dureza dos corações, notemos a prudência de Moisés, e a paciência de Deus em dissimular os tempos dessa ignorância (At 17.30).

    Não podendo abolir a escravidão, o legislador dos hebreus cerca-a de tais medidas, que cerceia-lhe os abusos e tira-lhe o caráter de crueldade, que é sua feição proeminente em nossa sociedade culta e cristã.

    É admirável ver esse grande Legislador, há três mil anos em um país asiático, elevar-se na compreensão da justiça, nos sentimentos da humanidade, muito acima dos nossos legisladores do século XIX.

    Estabeleçamos um pequeno confronto e envergonhemo-nos do contraste.

    Aquele que furtar um homem e o vender, diz Moisés, convencido de crime morra de morte (Êx 21.16).

    Entretanto, os nossos legisladores legalizam o infame roubo e o hediondo tráfico de africanos. Não é tudo: o art. 1º da lei Saraiva e Cotegipe, não exigindo a declaração de naturalidade da nova matrícula, decreta a escravização dos que são livres pela lei de 1831!

    O contraste é patente – depois de trezentos anos de uma horrorosa escravidão, cai o glorioso gabinete Dantas por ter inscrito no seu programa a libertação daqueles que tinham já servido dez vezes seis anos!

    Se alguém deitar fora um dente ao seu escravo ou escrava, os deixará ir livres (Êx 21.27).

    Entretanto, por três séculos, sob a égide protetora de nossas leis, os escravos saíam livres de seus senhores, quando, com a carne ensanguentada, arrancavam-lhes os açoites também a vida!

    Não entregarás a seu senhor o escravo que se tiver acolhido a ti: ele habitará contigo no lugar que lhe agradar, e descansará em uma de tuas cidades: não o molestes (Dt 23.15,16).

    É pungente aqui o contraste com a nova lei sobre o elemento servil.

    Se o escravo, impelido por um instinto imperioso, evadir-se às atrocidades do cativeiro, se, diz um dos nossos eloquentes tribunos, andrajoso, seviciado, espavorido, irrompendo de súbito, vos cair de joelhos entre as criancinhas que vos afagam e a mãe que vos sorri, é preciso esmagar o coração, afogar as lágrimas, carregar o semblante, e expelir o miserável, ou amarrá-lo para o entregar à justiça (!). Quando não, o processo, a multa de um conto de réis.

    Ao lado destas disposições mosaicas, que denotam o caráter brando da escravidão tolerada entre os judeus, há uma recomendação tocante que não podia deixar de exercer profunda impressão no coração do israelita. É a que está colocada à testa deste artigo. Lembra-te que também tu foste escravo na terra do Egito, e que o Senhor teu Deus te libertou.

    Uma tal advertência dava uma imensa força às tendências libertadoras da legislação mosaica, e corria poderosamente para abrandar a dureza dos corações, e restabelecer no seio das famílias religiosas a ordem instituída ao princípio.

    Fique, pois, por hoje demonstrado:

    Que a escravidão, ou antes, servidão judaica era muito diversa da escravidão atual: Consequentemente absurdo é justificar esta com aquela.

    Que mesmo essa servidão era apenas tolerada em razão da profunda ignorância dos tempos e dureza dos corações: razão que não pode ser invocada no século das luzes, sob a dispensação cristã.

    Que, finalmente, quem quiser defender sua propriedade escrava com o Velho Testamento, deve apelar para a ordem no princípio por Deus estabelecida: Comerás o teu pão no suor do TEU ROSTO.

    III. O NOVO TESTAMENTO PERANTE A ESCRAVIDÃO

      Tudo o que vós quereis que vos façam os homens, fazei-o também a eles. Porque esta é a Lei e os Profetas (Mt 7.12).

      Ficou patente do artigo anterior que o Velho Testamento está longe de legitimar a escravidão. E o Divino Mestre, intérprete infalível da Lei e dos Profetas, sintetizando os ensinos e o espírito do Velho Testamento no texto supratranscrito, confirma plenamente as conclusões deste artigo.

      Pois, se a Velha Dispensação, que São Paulo denomina – jugo da escravidão (Gl 5.1), condena, entretanto, o cativeiro, a Lei Real da Liberdade, como chama S. Tiago (2.8,12) a Nova Dispensação, o sancionará?

      É por certo contristadora a necessidade de se mostrar a cristãos que a índole do cristianismo é inteiramente infensa, profundamente oposta à instituição servil.

      De fato, Aquele que veio pregar remissão aos cativos, como declara o Profeta (Is 61.1), pode porventura pactuar com o cativeiro de qualquer espécie? E seu sublime Evangelho que aos homens anuncia a liberdade dos filhos de Deus, pode coadunar-se acaso com a escravidão? Finalmente, o Novo Testamento que nos apresenta o Filho de Deus derramando o próprio sangue preciosíssimo para nos resgatar do cativeiro; o Novo testamento que encerra o Evangelho oferecendo a todos gratuitamente o Espírito do Senhor, que é o Espírito da liberdade (2 Co 3.17), pode porventura cobrir com seu manto de justiça e de amor, a mais flagrante e mais cruel violação do amor e da justiça?

      No entanto, procuram alguns cristãos, que talvez mereçam este nome, obscurecidos pelos interesses negreiros, justificar com certas recomendações de São Paulo aquilo que não só é uma traição ao espírito do Evangelho, mas a negação completa das doutrinas e da vida desse grande apóstolo dos gentios.

      S. Paulo recomenda aos servos que obedeçam a seus senhores, e aos senhores que façam com os servos o que é justiça e equidade; logo – fatal cegueira! – a escravidão justifica-se perante o Novo Testamento.

      Com os olhos cerrados à luz do Evangelho não atendem à monstruosa blasfêmia de semelhante conclusão. Pois quê? O espírito da liberdade e do amor fraternal pode irmanar-se, sequer harmonizar-se, com a índole da escravidão? Cristo, o Redentor do mundo, pode ser conivente na destruição sacrílega da obra do Criador, no assassinato moral de milhares de criaturas?

      Brilhem, em nossas almas, alguns raios da esplêndida luz do cristianismo, e patentear-se-á a loucura de uma tal conclusão.

      Pondo o selo de sua autoridade divina na Lei e nos Profetas, prescreve o Senhor a seus discípulos: Tudo o que vós quereis que vos façam os homens, fazei-o também a eles.

      Agora pergunto: Este preceito do grande Redentor, entendido na extensão em que deve ser, é ou não é, um preceito abolicionista?

      Uma vez que ele penetre no entendimento, no coração e na consciência do cristão, que não é mero hipócrita, pode ele deixar de determinar forçosamente, obrigatoriamente a libertação de seus escravos?

      Fazei aos outros o que quereis que os outros vos façam, sobre ser um artigo de lei positiva é uma verdade primeira, um axioma moral, de uma aplicação tão intuitiva às relações dos senhores para com seus escravos, que escusado me é insistir sobre ela.

      Que outros dominados por mesquinhos interesses recusem sistematicamente pôr em prática nas múltiplas relações da vida esta regra de ouro, nunca, porém, o fará o cristão sincero, pois que lhe é ela duplamente santa, duplamente obrigatória; o Criador lha prescreve pelo órgão da razão, e Cristo nas áureas páginas de seu evangelho.

      Lançando por terra o muro que separava Israel dos outros povos, Cristo, afirma S. Paulo, matou em si as inimizades, e acabou com a distinção entre judeus e gentios. Do alto do monte da Galileia, enviando seus Apóstolos, o Salvador proclama perante a sua Cruz, a igualdade dos homens de todas as cores, a catolicidade da nova religião, que abrangeria no seio maternal todas as raças, línguas e condições. Na Parábola do Samaritano faz cair as escamas dos olhos do doutor da lei, e vibra no peito estreito do judeu, a nota sublime do cristianismo, ensinando-lhe que próximo não é somente o que fala a mesma língua, ou o que tem a mesma cor. Rasgando assim largos e desconhecidos horizontes, ordena Jesus a seu povo, como a síntese maravilhosa da Lei: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”.

      E não é transgredir esse mandamento conservar meu próximo debaixo de um jugo que em circunstância nenhuma queria sobre mim?

      Com S. Paulo, é-me permitido dizer em nobre altivez: “De ninguém me farei escravo”. Mas, como pode haver em mim reciprocidade cristã, a caridade de Cristo, se eu permito que outro homem seja feito meu escravo?

      “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, é a condenação terminante do cativeiro.

      Ainda mais: quando, à noite, no teu quarto, seguindo as prescrições do Salvador, dizes: Pai nosso, estas palavras não queimam, porventura os lábios? Como ousas, nessas sublimes palavras da oração dominical, proclamar a fraternidade de todos os homens, se lá na senzala estendem-se sobre dura tábua os membros andrajosos e alquebrados de um homem que é teu escravo? Onde está tua sinceridade? Pois aquele que por um pouco se esquece de sua triste sorte, é de fato teu irmão para que tenhas o direito de dizer – Pai nosso? Levas acaso o desprezo de Deus a ponto de crer que a tua oração será ouvida?

      Não reparas que o suor do negro derramado por ti e para ti, seus membros fatigados, seu corpo deformado e andrajoso, sua inteligência embrutecida, são terríveis petições bradando à eterna justiça: Não ouças a oração hipócrita; ele não é meu irmão: é meu senhor?

      A admirável introdução da oração dominical, reveladora da essência divina do cristianismo, é a manifestação eloquentíssima de seu espírito fraternal, diametralmente antagônico às injustiças e atrocidades inerentes ao cativeiro. É, portanto, a condenação enfática e peremptória da escravidão.

      Ela foi posta pelo Divino Mestre na boca de seus discípulos, para ser proclamada como um protesto diário contra todas as tiranias e violências da ferocidade humana.

      Pai Nosso!” Três sílabas que encerram a ideia mais elevada que nos foi dado compreender, diz A. Martin, e que um dia deve quebrar todas as tiranias, vivificar todos os povos, e constituir o gênero humano em sua glória e liberdade.

      E de fato, em todos os tempos e países em que o espírito genuíno do Evangelho contidos nessas sílabas luminosas se tem encarnado no seio de comunidades, soube sempre o homem despedaçar os grilhões do cativeiro, para dizer a seu escravo: Tu és meu irmão!

      Liberdade e fraternidade, sublimes utopias do espírito humano, são os frutos universais do verdadeiro cristianismo.

      Basta o que ficou dito para evidenciar que a índole e os preceitos do Novo testamento, longe de harmonizarem-se com o elemento servil, são pelo contrário a mais enérgica e eficaz das condenações contra essa postergação do direito natural.

      Será, pois, crível, que o herói mais eminente do Novo Testamento, o tipo mais completo da caridade evangélica, a encarnação mais viva do espírito cristão, o grande Apóstolo dos gentios, traísse a missão de amor, justiça e liberdade, de que o encarregara o Salvador, justificando a escravidão?

      Impossível.

      E as suas recomendações?

      É o que examinarei no próximo número.

      IV. O APÓSTOLO PAULO E A ESCRAVIDÃO

      A Lei foi posta para… os roubadores de homens (1 Tm 1.9,10).

      Do exposto no artigo antecedente, pode-se afirmar sem hesitação que, se Moisés arrancou as presas da serpe do escravismo entre os judeus, Cristo matou-a entre os cristãos.

      Cumpre, talvez, aqui observar com São Paulo, para dissipar qualquer dúvida sobre a veracidade de uma tal asserção, que nem todo o que se publica judeu, é judeu; do mesmo modo muitos que se apelidam cristãos são a desonra desse nome.

      É tempo, porém, de lavar o Apóstolo das gentes do labéu de escravocrata, entrando no exame de suas recomendações.

      Servos, recomenda S. Paulo, obedecei em todas as coisas a vossos senhores temporais. “Vós, senhores, fazei com os vossos servos o que é de justiça e equidade; sabendo que o Senhor tanto deles, como vosso, está nos céus: e que não há acepção de pessoas para ele”. Cl 3.22,23; 4.1.

      São estas as palavras que lidas através do prisma dos interesses negreiros parecem justificar a escravidão. Quando, porém, as lemos despidos de preconceitos, à luz dos altos interesses do Evangelho e das circunstâncias do tempo, vemos desfazer-se a nuvem que ameaçava manchar os límpidos céus do cristianismo.

      Já fizemos convergir para estas recomendações à luz intensa do espírito e dos preceitos do Novo Testamento e tornaremos bem saliente a loucura, a blasfema e monstruosidade da conclusão escravista.

      Indagarei neste artigo as razões que ditavam ao Apóstolo estas aparentes contradições ao Evangelho, que ele pregava.

      Enviado pelo Divino Mestre a semear as boas sementes da justiça e do amor, encontrou no mundo gentílico, sobre a escravidão, as mesmas ideias acanhadíssimas e ferozes, a mesma dureza de coração, que Moisés entre os judeus.

      Que fazer? Abrir guerra imediata, tenaz, implacável, era insensato. Seria talvez nobre, mas com certeza não seria prudente que, judeu ignorado, ele caísse em guerra franca esmagado sob o peso da terrível instituição, que se identificara com a vida das sociedades pagãs. Com os olhos umedecidos, admiramos John Brown protestando, no século XIX, do alto do cadafalso, contra a monstruosidade da escravidão; mas com razão censuraríamos o grande Apóstolo, se, não ponderando as circunstâncias do tempo, falseasse imprudentemente as sábias recomendações do Mestre, deitando o vinho novo de sublimes doutrinas em velhos odres pagãos.

      Convinha-lhe, portanto, imitar a prudência de Moisés; importava renovar os odres, para que pudessem resistir à expansão poderosa das novas ideias.

      Não devia, observa criteriosamente sobre este ponto o Rev. Houston,[1] esperar a colheita antes de lançar as sementes da justiça, da caridade, da igualdade absoluta de todas as condições e posições sociais perante Cristo crucificado, da fraternidade universal perante o único Deus de toda a terra, Pai comum de todos os homens, para que pudesse obter a colheita luminosa da liberdade? Convinha que o espírito de Cristo penetrasse primeiro na massa impura do gentilismo.

      A escravidão era sintomática do egoísmo, indolência e ambição desenfreada; relevava combater a origem do mal. É, por certo, charlatão ou inexperiente, o médico que combate os sintomas, em vez de combater a moléstia.

      Não raro é ser uma febre, por exemplo, o resultado de uma lesão orgânica; neste caso, só a insensatez poderia levar o facultativo a tentar curá-la sem previamente medicar o órgão lesado.

      Tais considerações tornam claramente compreendidas as recomendações de S. Paulo. Como médico sábio e diligente, aplicava às moléstias originais o poderoso remédio das novas doutrinas, certo de que com a moléstia desapareceriam os sintomas.

      Demais, S. Paulo não era um político que pretendesse reformar os moldes das velhas sociedades. A regeneração social era apenas uma consequência natural dos sãos princípios que pregava. Sua missão era imediata e mais elevada: ele buscava a salvação das almas pela fé em Jesus Cristo crucificado.

      Com que direito, portanto, obstaria ele a salvação urgente de milhares, levantando logo no princípio o grito ensurdecente de preconceitos seculares, e profundos interesses de ordens privada e política?

      Por todas essas considerações assaz poderosas, convinha dissimular ainda os tempos dessa ignorância, e, como Moisés, a espera de melhores tempos, capitular ante a dureza dos corações, até onde fosse compatível com a dignidade de seu ministério.

      As palavras do Apóstolo não importam, pois, a legitimação da escravidão em tempo nenhum, muito menos no século em que vivemos. O valor delas pode ser expresso na seguinte paráfrase: Tende paciência, oh! servos cristãos; vós sois escravos de Cristo, que exige suporteis por mais um pouco a injustiça do cativeiro, a fim de que a revolta prematura de milhões de escravos não lance terrível confusão na sociedade, perturbando assim a disseminação da Nova Crença, levantando ela a blasfêmia de poderosos preconceitos sociais, e fazendo atribuir-lhe intuitos políticos e temporais, em vez de fins espirituais, a que realmente mira.

      Tende paciência: a semente do Evangelho germina, e em breve colhereis o fruto saboroso da liberdade.

      Quando consideramos que o número de escravos no Império Romano excedia quase dez vezes a população livre, e constituía a quase totalidade da parte ativa da sociedade, podemos imaginar o quadro horroroso de uma conflagração social se o cristianismo não assumisse a posição prudente que assumia.

      Seis anos mais ou menos depois que S. Paulo escreveu essas recomendações, a terrível revolta do heroico Espártaco veio justificar plenamente a prudência do grande Apóstolo.

      César Cantu, tratando na pág. 51, do 4º vol. de sua História Universal, da escravidão no Império Romano, evidencia a justeza do que fica dito sobre os motivos que determinaram sua previdente posição ante o temeroso problema.

      Como Moisés, ergueu-se ele muito acima de seu tempo, e lavra em sua epístola a sentença de morte da escravidão, sem, entretanto, lançar a centelha das conflagrações civis, que, já no ano 133 antes de Cristo, convulsionara terrivelmente o Império.

      Ante o estado explosível da sociedade, revelado por essa temerosa revolta dos escravos e pela insurreição heróica dos gladiadores no ano 71 da era cristã, admiremos a habilidade com que o apóstolo reprova a servidão, aconselhando os servos a se libertarem: “Foste chamado sendo servo? Não te dê cuidado: e se ainda podes ser livre, aproveita-te melhor. Porque o servo que foi chamado no Senhor, liberto é do Senhor: assim mesmo o que foi chamado sendo livre, servo é de Cristo. Por preço fostes comprados, não vos façais servos de homens” (1 Co 7.21-23).

      Estas palavras com certeza não revelam grande entusiasmo pela escravidão.

      Neste melindroso assunto, não esqueceu S. Paulo dos senhores. Não só lembra-lhes que eles e seus servos são escravos de um mesmo Senhor, para o qual não há acepção de pessoas, mas ordena-lhes que deixem as ameaças e façam com seus servos o que é de justiça e equidade.

      E hoje, que a dulcíssima luz do Evangelho tem dissipado nevoeiros da razão, o que é, pergunto ao mais vermelho escravocrata, o que é que, perante os imutáveis princípios da justiça, se deve fazer com aqueles que foram iniquamente privados de seus direitos?

      São notáveis ainda as palavras com que S. Paulo apadrinha um escravo fugido. O senhor é Filemom, e o escravo Onésimo. “Ainda que eu tenha muita liberdade em Jesus Cristo, para te mandar o que te convém: contudo antes te rogo com caridade… pelo meu filho Onésimo. Recebe-o não já como um servo, mas em vez de servo um irmão muito amado” (v. 7,10,16).

      Tal pedido não é certamente de um entusiasta pela propriedade escrava, pois, bem entendido, ele encerrava um mandamento para a libertação do convertido Onésimo.

      Finalmente declara o excelente Apóstolo que a Lei de Deus foi posta para a condenação dos roubadores de homens (1 Tm 1.10).

      Fazer uma tal declaração é fulminar a escravidão, a do Brasil principalmente, em sua origem, e pôr os que se aproveitam desse roubo debaixo do terrível anátema da Lei divina.

      É de crer que não invocarão mais impiamente S. Paulo, para cobrir com sua autoridade veneranda aquilo que é contradição flagrante do espírito e doutrinas do cristianismo. Suas recomendações explicam-se à luz dos tempos, e não podem erguer-se em conflito com o influxo invencível do evangelho, que tem em todas as esferas proclamado “remissão aos cativos”.

      V. O PÚLPITO EM FACE DA ESCRAVIDÃO

      Se o atalaia vir que vem a espada, e não tocar a trombeta: e o povo se não guardar, e vir a espada e levar uma alma dentre eles este tal foi por certo apanhado na sua iniquidade, mas eu demandarei o seu sangue da mão do atalaia (Ez 33.6).

                  A escravidão é um roubo sacrílego porque a liberdade é um dom primitivo de Deus, essencial ao pleno cumprimento dos elevados destinos da personalidade humana.

                  À luz do nosso século, impõe-se esta proposição com clareza intuitiva de uma verdade axiomática. O mais intransigente dos escravistas, seja dito em homenagem à intelectualidade brasileira, não ousa negar o brilho de sua evidência.

                  Fortíssima é, pois, a posição abolicionista neste último quartel do século: infelizmente não acontecia isso nos tempos apostólicos. Custa a crer que tantas fossem as trevas do espírito pagão, que mesmo seus filósofos pugnassem em favor da escravidão, como de um direito natural, por isso que era uma necessidade social.

      Não pode com certeza subsistir a sociedade sem o trabalho manual e sem a indústria; entretanto, apregoavam os cegos moralistas desses tempos, que não deviam os cidadãos desonrar-se com a indústria e o trabalho, naturalmente reservados aos que traziam no corpo o ferrete de cativos. Diz Xenofonte que o homem condenado a trabalhos manuais torna-se inútil à república, mau cidadão e mau defensor da pátria. Cícero tem por vergonhoso e indigno de um homem livre qualquer profissão laboriosa, e mal excetua a arquitetura e a medicina (C. Cantu, vol. 4º, p. 56).

      Com preconceitos tão absurdos e infelizes não era de espantar, afirma o mesmo historiador, que fosse a escravidão considerada como o direito natural, como um dogma político pelos proprietários e pelos filósofos, que não podiam compreender uma sociedade sem aquela funesta condição. Mais ainda: os próprios escravos, quando se revoltavam, não contestavam o princípio de sua condição, e limitavam-se a protestar contra os excessos de que os senhores os tornavam vítimas.

      Isto projeta nova luz sobre a prudente atitude do Apóstolo dos gentios, e sobremodo corrobora as considerações do artigo antecedente. Por mais de um motivo convinha-lhe alargar primeiro os horizontes morais, e primeiro convencer de estultice a sabedoria daquele século. O abolicionismo intransigente, imediato, seria um crime de lesa-sociedade, a violação de um direito social!

      Hoje que, após dezenove séculos de lutas, os brilhantes raios do cristianismo têm varrido as carregadas sombras do espírito humano; hoje não há mais razão para as reservas do Apóstolo, pois é claro, como a clara luz meridiana, que a escravidão é a violação do direito natural, um crime de lesa-humanidade, um atentado sacrílego contra a obra de Cristo.

      À luz destas verdades incontestáveis, qual deve ser a atitude do púlpito em face da escravidão?

      Deverá ser a atitude negativa da reserva?

      Por que haverá perigo de partir do púlpito a fagulha produtora de um incêndio social? Sobre 11 milhões de homens livres, haverá nesse Império 100 milhões de escravos, cujo estado convulso, inflamável, espere, sôfrego, a primeira faísca incendiária?

      Ridículo seria supor que a posição de S. Paulo no Império Romano é idêntica à dos pastores atuais do Evangelho no Império no Brasil.

      Porque então a reserva, o silêncio medroso ante um crime tão grave?

      Acaso os nossos ouvintes não saberão ainda que a escravidão é ilícita e altamente ofensiva a Deus, de maneira a ser necessário dissimular os tempos desta ignorância, e preparar primeiro os odres para receberem o vinho puro da justiça e da caridade, da igualdade e fraternidade cristãs?

      Afirmo-lo, seria desconhecer o trabalho de dezenove séculos.

      Se nenhuma das circunstâncias que justificam cabalmente a posição um tanto reservada de S. Paulo, subsiste hoje, então o silêncio do púlpito não é prudência: é infidelidade.

      Sobre ser um roubo em face da razão, é o cativeiro a violação flagrante do espírito do cristianismo, a postergação consciente dos sacrossantos preceitos do adorável Redentor.

      Se isto é verdade, como já o demonstrei, como se justifica o silêncio dos atalaias de Israel?

      Pregue-se o Evangelho, dirá talvez alguém, e no dia em que ele plantar-se no coração do senhor, cairão por terra as cadeias de seus escravos.

      Se este modo de proceder fosse lícito em relação à escravidão, por que não o seria em relação às loterias, ao jogo, à embriaguez, à quebra do domingo, e a mil outras externações do pecado?

      Há, portanto, nesse método de conduta uma falsa apreensão dos deveres pastorais, de que infelizmente se encarrega de demonstrar o aspecto de muitas famílias crentes.

      “Eis aí, diz Amós, os olhos do Senhor Deus abertos sobre o reino que peca, e eu o exterminarei da face da terra”.

      E as ruínas que juncam o solo deserto do mundo antigo já estão atestando, na eloquência de sua mudez, a veracidade do Profeta.

      Não será, pois, dever urgente de empunharem o turíbulo os filhos de Arão, e fazerem subir de sobre o Altar o incenso de sua intercessão, antes que acenda a ira do Senhor contra esse pecado nacional?

      Mas, o fumo desse incenso provocará a justa indignação de Deus, se forem os sacerdotes participantes desse pecado. E ainda mesmo que não tenhamos o anátema em nossas casas, não existe ele porventura em nossas igrejas?

      Se a injustiça da escravidão tem de chamar mais algum flagelo sobre este país, não diz a Escritura Santa que ele começará pela casa de Deus?

      A apatia social nos acabrunha e não é necessário muito atilamento para descobrir-se na escravidão a causa principal deste grande mal. E não é verdade que temos em geral, a lamentar o mesmo mal em nossas comunidades crentes? Porque então não enxergar na mesma causa a origem dessa atonia religiosa, dessa velhice prematura, que ameaça as igrejas?

      Não será, pois, tempo de bradar com Josué: “O anátema está no meio de ti, oh! Israel?”

      Do seio das Igrejas Evangélicas, partiu nos Estados Unidos, o brado que espedaçou os ferros de quatro milhões de infelizes. Se tremendo foi o castigo que recebeu a resistência do Sul, riquíssimas foram as bênçãos que se seguiram à redenção dos cativos.

      Os ministros do Senhor dirigiram representações ao governo da república; o púlpito arremessou contra a nefanda instituição, os raios da condenação divina.

      Levantou-se então a consciência nacional e esmagou com a planta de Lincoln, a cabeça da serpe maldita.

      E quando os navios negreiros cruzavam desassombrados, os mares afrontando a justiça do Criador, foi ainda o espírito do cristianismo que, apoderando-se de Wilbeforce, Buxton e Lamartine, deu satisfação à Providência, fulminando com o verbo incendiado da justiça e caridade o hediondo tráfico de africanos.

      Morreu, porventura esse verbo poderoso nos lábios dos ministros do Senhor? O fogo sagrado do Evangelho, que dava têmpera inquebrantável à perseverante coragem de Garrison e Brown, que fazia pulsar no largo peito o coração generoso de Wilbeforce e Buxton, não terá mais virtude de infundir nos corações crentes a mesma dedicação, e produzir as mesmas pulsações ante a iníqua opressão de uma raça desgraçada?

      À extinção desta iniquidade social está providencialmente ligado o protesto eficaz de eminentes cristãos. Privar-se esta sociedade desse protesto fecundo, não é talvez frustrar-se os desígnios da Providência, ou, pelo menos, incorrer-se na ameaça estampada à testa deste artigo?

      Ainda mesmo que se duvidasse do extenso poder da palavra Evangélica neste vasto país, pode o púlpito assistir mudo, indiferente, sem violar seus mais sagrados deveres, ao espectador contristador de atropelar-se o direito, a justiça e caridade, a sombra sacratíssima da religião do Crucificado?

      Nada, pois, de contemporização ou coparticipação com o pecado social, que assim tem prejudicado os vitais interesses da Religião.

      Levante-se em nome do Redentor o mesmo protesto que já se tem levantado em nome da razão, da humanidade e dos interesses econômicos deste país.

      Salve-se a honra do Evangelho, caindo de todos os púlpitos o raio exterminador da escravidão no seio das Igrejas.

      VI. O CRENTE E A ESCRAVIDÃO

      O anátema está no meio de ti. Oh Israel: Tu não poderás estar diante de teus inimigos até não ter exterminado do meio de ti o que se acha manchado deste crime (Js 7.13).

      Tendo nos artigos antecedentes chamado a atenção para o fato de ser a escravidão altamente ofensiva às leis de Deus e da humanidade; cumpre-me, ao concluir a tarefa que me impus, aplicar à consciência do cristão sincero as verdades já expendidas.

      Ouve-me, pois, com paciência, prezado irmão, se é que possuis escravos. Impele-me o desejo de teu próprio bem, tanto quanto a compaixão pela raça espoliada.

      1º. Tu professas ser cristão, por conseguinte respeitador das leis de Deus, quer sejam elas escritas nas páginas das Escrituras, quer gravadas nas tábuas do teu coração.

      Pois bem, nunca atentaste à manifesta incompatibilidade que há entre essa profissão de fé e o cativeiro que mancha tua casa?

      Se até aqui procuravas confusamente adormecer tua consciência em algum texto isolado da Escritura, creio que já te convenceste do absurdo e sacrilégio de semelhante tentativa. Não ousarás mais invocar S. Paulo como advogado da escravidão.

      Se a religião, portanto, que professas, condena o cativeiro, escolhe entre ela e os escravos que possuis. Ou guarda teus escravos, e continua aproveitar do suor do rosto do teu próximo, e, neste caso, imitando o exemplo dos gadarenos, pede a Jesus que se retire de tua casa; ou então, restitui a teus escravos a liberdade roubada e declara por esse ato que não és um mero hipócrita.

      Mas isto é duro, dirás, ninguém tem o direito de me propor tão crítica alternativa.

      Que é duro, não o nego; porém que me assista o direito, mais ainda, o dever, de pôr diante de tua consciência essa penosa alternativa, coisa essa que podia ser verdadeira se tu e eu vivêssemos no século de S. Paulo.

      A plena luz do cristianismo, que tem iluminado a esfera moral da humanidade, cumpro apenas um dever infelizmente negligenciado.

      E em face do expendido em artigos anteriores responde-me: A escravidão é ou não uma injustiça que ofende diretamente o espírito e os preceitos do Evangelho? Se é, como não ousas negar, não pode ela deixar de ser um pecado profundamente desagradável ao Deus de caridade anunciado pelo grande Redentor.

      E pode o cristão, sem perder, ipso facto, o direito a esse nome sagrado, conservar conscientemente em sua casa, sob qualquer pretexto, uma coisa pecaminosa, desagradável a seu Deus?

      Conheces que a escravidão é uma injustiça, portanto, um pecado, e continuas voluntariamente a cometer esse pecado?

      Não negarás, por certo, a S. Paulo e S. João o direito de te proporem, em tuas circunstâncias, a terrível alternativa. Ouve.

      Se nós pecamos VOLUNTARIAMENTE depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não resta mais hóstia pelos pecados, senão uma esperança terrível do juízo, e um ardor de um fogo zeloso que há de devorar os adversários.

      Filhinhos, ninguém vos engane. O que faz obra de justiça, é justo: como Ele também é justo. Aquele que comete o pecado é filho do diabo. Hb 10.27; Jo 3.7,8.

      Abrindo, pois, diante de tua consciência a terrível encruzilhada, não fiz mais do que propor-te o ensino desses ilustres Apóstolos. Não exorbitei, antes te ofereci uma pedra de toque para mostrares a teus irmãos o fino ouro de tuas crenças, e persuadires a ti mesmo da sinceridade de tua fé.

      2º. “E os meus interesses, como viverei depois”, objetarás talvez.

      Teus interesses são os interesses da justiça e da verdade, são os interesses do Evangelho, e a vida de tua alma vale mil vezes mais que a vida do teu corpo.

      “Busca em primeiro lugar o Reino do Céu e a sua justiça”, é a ordem terminante de teu Divino Mestre. Quem, pois, ousa desobedecer ao Senhor dos senhores? Que ordem de interesses haverá na terra ou nos infernos, capaz de suplantar os supremos interesses do reino de Deus?

      Demais, quem te disse que teus interesses temporais sofreriam? Não vale a bênção de Deus mais que os braços de mil escravos?

      Disse-me, há poucos dias, um fazendeiro que esperava colher cem alqueires de arroz e colheu apenas quatro. Cumpre os preceitos do Senhor e “Ele abrirá as cataratas do céu e derramará sua bênção sobre ti, e em abundância” (Ml 3.7,12…).

      Julgavam os Estados do Sul, na América do Norte, que acabar com os escravos era matar o “rei algodão”, destruir a lavoura e, consequentemente, a riqueza e a prosperidade do país. No 1º de janeiro de 1863 um golpe violento do grande Lincoln converte em cidadãos 4 milhões de escravos. Após o terrível abalo, e apesar de 4 anos de tremenda guerra civil, a riqueza e progresso dos Estados Unidos não tem rivais no mundo, e os sulistas em nada tem que invejar a prosperidade do Norte. Este quadro contrastado com o estado do nosso país, é uma eloquente confirmação da seguinte verdade afirmada pela Escritura, verdade que naturalmente se verifica nos indivíduos, cujo agregado constituem a nação: “A justiça exalta as nações, mas o pecado faz miseráveis os povos” (Pv 14.34).

      Além disso, Aquele que disse, “Busca o Reino do Céu e sua justiça em primeiro lugar”, acrescentou, “e todas as coisas (temporais) se vos darão” (Mt 6.33).

      3º. “Mas a lei de meu país me permite possuir escravos”, dirás, talvez no desejo egoísta de conservar tua prosperidade.

      Dado que haja essa lei, ela é nula perante a tua consciência, ainda mesmo que promulgada por uma assembleia de anjos. Não há para ti lei válida, que se levante contra as leis de Deus.

      Essa pretensa lei te concede a posse da liberdade de outro homem; porém, uma lei primitiva e mais alta confere a esse homem o domínio de sua própria liberdade. As duas leis se contradizem; é necessário escolher entre elas, e eis de novo a crítica alternativa a surgir diante de ti. Ou a lei dos homens ou a lei de Deus: decide.

      4º. Os que, pela astúcia e pela força se apoderaram, nas costas da África, de homens livres, para vende-los aos fazendeiros do Brasil, cometeram evidentemente um roubo hediondo. E todas as leis de nossos legisladores não podem legitimar um roubo. A Lei de Deus aí está, declara S. Paulo, contra os roubadores de homens.

      Mas objetarás: “Os culpados são os que roubaram, eu possuía os escravos na boa fé”.

      Bem, por isso eras desculpável; porém essa boa fé não existe mais.

      Sabes que foram roubados, como consentes em reter o roubo?

      Tão bom é o ladrão como o consentidor. É duro no teu caso a aplicação dessa máxima, e sinceramente desejo que dessa aplicação te possas eximir.

      Entretanto, essa máxima é a consagração popular do que diz o Apóstolo: “São dignos de morte os que fazem semelhantes coisas e… os que consentem nos que a fazem” (Rm 1.32).

      Não roubaste, é verdade, mas aproveitas do roubo que outros fizeram, e assim consentes, tornando-te solidário com eles perante Deus.

      Quando compramos um objeto roubado e o dono reclama, absurdo e ridículo seria exigir dele o valor do objeto, para lhe entregarmos então. O único recurso é irmos bater à porta do ladrão, para reclamar nosso dinheiro. Porém o ladrão morreu, e outros moram em sua casa. Que fazer? Exigir dos novos moradores uma indenização? Eles nos bateriam, indignados, com a porta na cara.

      Não há remédio: é entregar o objeto roubado, ou lamentar inutilmente a nossa imprudência ou má sorte. O contrário é faltarmos à lealdade, e darmos o direito de sermos comparados ao ladrão.

      Pois bem, o escravo é o dono que reclama de ti sua liberdade. Deves exigir que ele te dê o valor daquilo que por direito natural lhe pertence?

      “O ladrão é o governo”, dizes tu. Pois bem, reclama do ladrão o teu dinheiro. Mas, o governo que segundo as tuas ideias, foi o ladrão, já morreu, e mesmo que não tivesse morrido, ele não tinha dinheiro para te pagar, pois o governo é apenas administrador dos dinheiros públicos. Com que direito, pois, exiges indenização do atual governo?

      Desengana-te, perante os eternos princípios da justiça não tens direito de especular com a liberdade de teu semelhante; e como cristão deves deixar a fundo de emancipação aos que não regem pelas normas sublimes do evangelho. Sofre o prejuízo, entrega a liberdade roubada a seu legítimo proprietário, assim o exige a lealdade, a justiça, a humanidade e Deus.

      5º. Lê a história de Acã narrada no cap. 7 de Josué, donde transcrevi o texto que encima estes artigos. Repara como a cobiça de um homem turbou todo Israel. Só depois que as chamas do Vale de Acor consumiram seu cadáver, e tudo quanto lhe pertencia, pôde a benção de Jeová cair sobre a congregação de seu povo.

      Pois bem, retendo em tua casa o anátema da escravidão, não somente chamas sobre ela o desagrado de Deus, mas ainda sobre a igreja de que és membro. A igreja, porém, protestará energicamente e mostrará em tudo que não tem culpa neste negócio. Então, a maldição cairá unicamente sobre a cabeça do que se acha manchado desse crime.

      6º. Confesso que grande é minha vergonha e grande a confusão da Igreja de Cristo no Brasil, ao ver incrédulos, pelo simples amor à humanidade, abrirem mão de seus escravos; entretanto que os que professam fé no Redentor dos cativos não rompem as ligaduras da impiedade, nem deixam ir livres os oprimidos! Leitor, se acaso vires algum incrédulo ler este artigo, eu te peço, para honra da Igreja de Nosso Senhor no Brasil, que não deixe seus olhos percorrer este parágrafo 6º.

      7º. Se Moisés, para libertar os servos israelitas, apelava para a escravidão e libertação da terra do Egito (Dt 15.15), não terás, cristão, na história de tua vida um argumento ainda mais forte e mais comovente, para libertares teus escravos?

      De um cativeiro amargo e degradante não te libertou o sangue do compassivo Redentor? E agora ao contemplares teu escravo, não ouves a terrível repulsão de teu Senhor?

      “Servo indo, perdoei-te a dívida toda… não devias tu logo compadecer-te igualmente de teu companheiro, assim como também eu me compadeci de ti?” (Mt 18.32).

      9º. Bem vês, é infelizmente duro “fazer aos outros o que não queremos que eles nos façam”, por isso “o caminho dos céus é estreito”. O escravo é o “teu olho que te serve de escândalo”, é “o teu braço direito que te faz pecar”. Pois bem, arranca-os, diz o Mestre, os violentos são os que arrebatam o reino dos Céus.

      Respeita na pessoa do teu escravo a imagem de teu Deus, não ultrajes o direito inviolável de uma propriedade sagrada.

      Em nome da justiça que fulminou Acã, em nome da caridade que pregou o crucificado Redentor dos cativos, não continues a cobrir de ludíbrio a Igreja envergonhada de nosso Senhor Jesus Cristo: restitui a inalienável liberdade a seu legítimo proprietário.


      [1] Rev. James Theodore Houston, pastor da Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro, que no dia 18/08/1884 pregou um polêmico sermão contra a escravidão, publicado na semana seguinte. É possível que ECP esteja fazendo uma referência a esse sermão.

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