IPB: História e Identidade
Curadoria dos Museus da IPB

História do Movimento Reformado I – Suíça e França

Introdução

Poucos anos após o início da Reforma Protestante na Alemanha, o país vizinho ao sul, a Confederação Suíça, testemunhou o surgimento de um segundo movimento de Reforma, semelhante em alguns aspectos ao movimento de Lutero, mas diferente em várias questões significativas. Esse novo movimento ficou conhecido como Segunda Reforma, Reforma Suíça ou Movimento Reformado. O último termo resultou da percepção de que o movimento suíço foi muito além das iniciativas de Lutero no sentido de reformar a igreja.

A Reforma Suíça teve duas manifestações distintas: uma delas originada em Zurique, sob a liderança inicial de Ulrico Zuínglio, e a outra em Genebra, sob a direção de João Calvino. Com o passar do tempo, esta segunda vertente se tornou predominante em termos internacionais, ficando conhecida como calvinismo. Os grupos zuinglianos e calvinistas do continente europeu passaram ser conhecidos como “igrejas reformadas”; nas Ilhas Britânicas, as denominações herdeiras de Calvino adotaram o nome “igrejas presbiterianas”. Com o passar do tempo, graças à imigração e ao esforço missionário as tradições reformada e presbiteriana se difundiram por todo o mundo.

As principais contribuições do movimento reformado se deram nos âmbitos da teologia, do culto e do governo eclesiástico. No aspecto doutrinário, o calvinismo defendeu, à luz das Escrituras, um entendimento da soteriologia conhecido como monergismo, ou seja, a salvação decorre acima de tudo da ação soberana e graciosa de Deus, e não meramente da escolha ou decisão humana. Quanto ao culto, os reformados propuseram o chamado “princípio regulador”, no sentido de que a adoração a Deus só deve incluir elementos explicitamente prescritos pela Escritura. Finalmente, a tradição reformada entende que a igreja deve ser governada por oficiais eleitos, os presbíteros, reunidos em concílios locais, regionais e nacionais.[1]

Ulrico Zuínglio: o fundador da tradição reformada

A grande importância atribuída a João Calvino, o mais destacado teólogo e organizador do movimento reformado, muitas vezes obscurece a figura do reformador Ulrico Zuínglio, o líder inicial desse movimento. Zuínglio nasceu no dia 1º de janeiro de 1484 (apenas dois meses após o nascimento de Lutero) na vila de Wildhaus, localizada no Cantão de St. Gallen, no nordeste da Suíça. Após frequentar uma escola latina em Berna, ingressou na Universidade de Viena, onde entrou em contato com o movimento humanista. Em seguida, estudou na Universidade de Basileia, na qual foi influenciado pelo interesse bíblico de alguns mestres e formou um círculo de amigos que mais tarde o puseram em contato com o grande humanista holandês Erasmo de Roterdã.[2] Este o incentivou ao estudo do grego e dos pais da igreja.

Após obter o grau de mestre em 1506, foi ordenado ao sacerdócio e tornou-se pároco na cidade de Glarus. As influências humanistas e as suas próprias experiências como capelão de mercenários suíços na Itália o levaram a opor-se a esse sistema. Tal fato contribuiu para a sua transferência para Einsiedeln em 1516 e, dois anos mais tarde, para Zurique, onde se tornou sacerdote da principal igreja da cidade. Tendo lido recentemente a tradução latina do Novo Testamento feita por Erasmo, começou em 1º de janeiro de 1519 a pregar uma série de sermões expositivos sobre o Evangelho de Mateus, que causaram forte impacto. A partir dessa época, defendeu um grande programa de reformas em cooperação com as autoridades civis. Suas ideias sobre o culto público e os sacramentos representaram uma ruptura mais radical com as antigas tradições do que fez o movimento luterano.[3]

O ano de 1522 foi decisivo. Zuínglio protestou contra o jejum da quaresma e o celibato clerical, casou-se com Ana Reinhart e escreveu a obra Apologeticus Archeteles, sua primeira grande declaração de fé. Renunciou ao sacerdócio católico romano, sendo contratado pelo concílio municipal como pastor evangélico. Nos dois anos seguintes, uma série de debates públicos levou à progressiva implantação da reforma em Zurique, culminando com a substituição da missa pela Ceia do Senhor em 1525. Infelizmente, alguns de seus primeiros colaboradores, tais como Conrado Grebel e Félix Mantz, acabaram por divergir dele quanto ao batismo e à relação entre igreja e estado, dando início ao movimento anabatista (Irmãos Suíços).

Os últimos anos da vida de Zuínglio foram marcados por crescente atividade política. No interesse da causa reformada, ele defendeu a luta contra o império alemão e também contra os cantões católicos da Suíça. Buscando fazer uma aliança com os protestantes alemães, encontrou-se com Lutero no célebre Colóquio de Marburg, convocado pelo príncipe Filipe de Hesse em 1529. Embora concordassem em quase todos os pontos discutidos, os dois reformadores não puderam chegar a um acordo com relação à Ceia do Senhor. No dia 11 de outubro de 1531, quando acompanhava as tropas protestantes na segunda batalha de Kappel, Zuínglio foi morto em combate. Segundo se afirma, suas últimas palavras foram: “Eles podem matar o corpo, mas não a alma”.[4]

O reformador de Zurique defendeu insistentemente a simplicidade litúrgica, segundo o princípio de que somente deve ser incluído no culto a Deus aquilo que é expressamente determinado pela Escritura (“princípio regulador”). Ele deu grande ênfase à absoluta soberania divina e ao conceito de eleição ou predestinação. O batismo identifica aqueles que são membros tanto da igreja como da sociedade civil. Os magistrados civis devem cuidar das questões mundanas da igreja, inclusive a disciplina. A ceia é uma recordação ou memorial da morte de Cristo. Suas concepções teológicas estão expostas em obras como Comentário sobre a verdadeira e a falsa religião, A providência de Deus, Explicação da fé de Zuínglio e Exposição breve e clara da fé cristã.

A difusão do movimento na Confederação Suíça

Ulrico Zuínglio foi impulsionado por dois tipos de motivações: humanismo bíblico e fervor patriótico. Quanto ao primeiro elemento, ele se tornou um grande estudioso das Escrituras nas línguas originais, um notável pregador e expositor bíblico, e um firme defensor da autoridade da Palavra de Deus. Ele entendia que a essência da vida cristã é a conformidade com a vontade de Deus conforme expressa em sua Palavra e que esta deve ser o único fundamento para a fé cristã e o culto cristão. Os Sessenta e Sete Artigos que escreveu para o primeiro debate de Zurique (1523) são considerados a primeira confissão de fé protestante.

Além de pregador e teólogo, Zuínglio era um patriota e foi, no aspecto político, o mais hábil dos reformadores. Ele desejava que o evangelho bíblico fosse pregado livremente em todos os treze cantões da confederação suíça e nas regiões adjacentes da Alemanha. Inicialmente, apenas Zurique abraçou a fé reformada. Em seguida, a partir de 1522, houve a adesão gradual de Basileia, especialmente mediante os esforços do reformador João Ecolampádio (1482-1531). Berna, o maior dos cantões, foi ganha para a Reforma em 1528, por meio de um debate público no qual Zuínglio teve um papel destacado. O cantão natal de Zuínglio, St. Gallen, também foi ganho, bem como Schaffhausen e Glarus, e as cidades de Constança e Mülhausen, na Alsácia. Outra conquista importante para a fé reformada foi a cidade alemã de Estrasburgo, onde atuaram os reformadores Wolfgang Köpfel ou Capito (1478-1541) e o notável Martin Butzer (1491-1551).

Como foi observado, Lutero e Zuínglio não chegaram a um consenso no que diz respeito à Ceia do Senhor. O primeiro acreditava na presença real ou física de Cristo na Ceia e o segundo interpretava o sacramento de maneira simbólica, comemorativa. Tal divergência enfraqueceu o movimento evangélico. Além disso, os velhos cantões rurais de Uri, Schwyz, Unterwalden e Zug, bem como a cidade de Lucerna, rejeitaram a Reforma e criaram um forte partido católico. Quando os dois grupos se enfrentaram na segunda batalha de Kappel (11 de outubro de 1531), o próprio Zuínglio foi uma das vítimas fatais. Outra vítima foi a reforma na Suíça alemã, cujo progresso foi permanentemente detido.[5] Zuínglio foi sucedido na liderança da igreja de Zurique por Johann Heinrich Bullinger (1504-1575), líder hábil e conciliador, que, entre outras contribuições, teve participação destacada na redação do Consensus Tigurinus ou Acordo de Zurique (1549) e nas chamadas Confissões Helvéticas.

A filiação da cidade de Berna ao protestantismo reformado foi da mais alta relevância. Esse fato salvou o zuinglianismo do isolamento na Confederação Suíça e – o que é mais importante – contribuiu para a adesão da cidade de Genebra à causa reformada, livrando-a do domínio dos duques católicos de Savoia. Com isso, tornou-se possível a obra do expoente mais ilustre da causa reformada – João Calvino.

João Calvino: o surgimento de um novo líder

Com a morte de Zuínglio em 1531, parecia que a Reforma Suíça havia recebido um golpe fatal. O movimento continuou, sob a hábil liderança de Henrique Bullinger, mas possivelmente teria ficado restrito a algumas partes da Confederação Suíça e da Alemanha, sem causar um impacto mais amplo na Europa e no mundo. Foi então que entrou em cena um novo personagem, cujo brilhantismo intelectual e habilidade diplomática haveriam de dar profundidade teológica e amplitude continental à fé reformada. Esse personagem foi o reformador francês João Calvino.

Inicialmente, parecia pouco provável que Calvino viesse a se tornar um dos maiores vultos da Reforma Protestante. Nascido em 10 de julho de 1509 na cidadezinha de Noyon, na Picardia (nordeste da França), o menino Jean cresceu em um lar profundamente católico. Seu pai era advogado do clero local e secretário do bispo, posição que lhe permitiu obter para o filho um “benefício eclesiástico”, ou seja, um cargo na estrutura da igreja. Aos catorze anos, Calvino ingressou na antiga e prestigiosa Universidade de Paris, visando preparar-se para o sacerdócio. Estudou a teologia escolástica e as chamadas “humanidades”, isto é, as línguas (especialmente o latim) e a literatura da antiguidade clássica. Por três anos (1528-1531), também se dedicou ao estudo do direito em duas cidades do interior, Orléans e Bourges. Nesta última, teve a oportunidade de aprender grego com o erudito luterano Melchior Wolmar.[6] Toda essa preparação esmerada haveria de ser muito valiosa para o seu futuro trabalho como reformador.

Regressando a Paris, Calvino dedicou-se à sua grande paixão, os estudos humanísticos, publicando um comentário do tratado Sobre a Clemência, do antigo filósofo estoico Sêneca. Pouco depois, ocorreu o primeiro grande ponto de transição em sua vida – sua conversão à fé evangélica –, sobre a qual existem poucas informações. No fim do mesmo ano (1533), ocorreu um incidente curioso. Nicolau Cop, um amigo de Calvino que acabara de ser eleito reitor da Universidade de Paris, fez um discurso polêmico em que expôs ideias protestantes e pediu reformas. As reações foram intensas e os dois amigos tiveram de fugir para salvar a vida. Calvino encontrou abrigo na casa de um amigo em Angoulême, onde começou a escrever a obra notável que o tornaria conhecido em toda a Europa.

Enquanto isso, crescia assustadoramente a repressão estatal contra os protestantes franceses. Calvino retornou brevemente à sua cidade natal em maio de 1534, a fim de renunciar ao seu benefício eclesiástico, e em janeiro do ano seguinte deixou a França, indo residir em Basileia, na Suíça. Foi ali que ele teve a oportunidade de concluir as Institutas da Religião Cristã, publicando-as em março de 1536. Tinham como prefácio uma carta ao rei Francisco I, suplicando tolerância em favor dos evangélicos perseguidos. Com essa obra, Calvino foi reconhecido imediatamente com o principal líder e porta-voz do protestantismo francês.[7] Poucos meses depois ocorreria o segundo grande momento de transição na vida do jovem reformador, que teve consequências ainda mais dramáticas e profundas.

Calvino e Genebra: “A mais perfeita escola de Cristo”

Em agosto de 1536, Calvino dirigia-se da França para Estrasburgo, onde pretendia residir. Queria tão somente pernoitar em Genebra, na Suíça, e seguir viagem no dia seguinte. Apenas dois meses antes, essa cidade havia abraçado a Reforma Protestante, sob a liderança do ardoroso reformador Guilherme Farel. Este convenceu o jovem autor das Institutas a permanecer em Genebra e ajudá-lo na consolidação do trabalho. Todavia, menos de dois anos depois, em virtude de conflitos com as autoridades civis, os dois pastores foram expulsos da cidade (abril de 1538).

Calvino finalmente pôde ir para Estrasburgo, onde residiu por três anos e colaborou com o reformador Martin Butzer. Nesse período, pastoreou uma igreja de refugiados franceses, lecionou em uma academia local e casou-se com uma de suas paroquianas, a viúva Idelette de Bure. Também se dedicou a uma intensa atividade literária, escrevendo uma nova edição das Institutas, o Comentário de Romanos (seu primeiro comentário bíblico) e um tratado sobre a Ceia do Senhor. Outra obra dessa época foi Resposta a Sadoleto, uma defesa da fé evangélica em resposta a um apelo dirigido por um bispo católico à população de Genebra.

Por insistência dos governantes de Genebra, Calvino acabou retornando para essa cidade em setembro de 1541, ali permanecendo até o final da vida. Sob a hábil liderança do reformador e de seus colegas, Genebra se tornou a grande cidadela da fé reformada, recebendo refugiados e visitantes de muitos lugares da Europa. Essas pessoas, ao retornarem para os seus países, contribuíram para a ampla difusão do movimento reformado. Um desses refugiados foi o reformador escocês João Knox, que, em uma carta, referiu-se a Genebra como “a mais perfeita escola de Cristo que já existiu sobre a terra desde os dias dos apóstolos”.[8]

Ao longo dos anos, Calvino ajudou a estruturar a igreja reformada de Genebra, provendo-a de uma constituição, uma confissão de fé, um catecismo e uma liturgia, além de um hinário, o Saltério de Genebra, também idealizado por ele. O trabalho da igreja era realizado por quatro categorias de oficiais: pastores, mestres, presbíteros e diáconos. O reformador também empreendeu um vasto programa de pregação expositiva, ensino religioso e reflexão teológica, que resultou em um enorme volume de publicações. Suas ideias nos campos da dogmática, interpretação bíblica, política, responsabilidade social e outras áreas têm sido influentes há vários séculos.

Ao contrário do que dizem muitos livros de história, Calvino jamais exerceu cargos políticos em Genebra e muito menos foi o “ditador” ou “tirano” daquela cidade.[9] Na realidade, durante a maior parte do seu ministério, ele teve um relacionamento difícil com as autoridades civis, situação que só mudou a partir de 1555. Uma das causas dessas tensões era a sua insistência no sentido de que Genebra fosse uma cidade verdadeiramente reformada, em que os valores bíblicos se refletissem em todas as áreas da vida pessoal e comunitária. Algumas das maiores contribuições do reformador ocorreram nos últimos anos da sua vida.

João Calvino: os anos finais

Desde que retornou a Genebra em 1541, Calvino se dedicou a uma intensa atividade em várias frentes, pastoreando, escrevendo e cuidando dos interesses da causa reformada. Esse trabalho se desenvolveu em meio a muitas dificuldades e obstáculos, principalmente os constantes conflitos com as autoridades civis. Algumas das famílias mais ricas e influentes da cidade (os chamados “libertinos”) opunham-se ao seu programa de reformas e elevação dos padrões morais da comunidade.

Essa situação mudou em 1555. Os conselhos municipais passaram a ser constituídos de homens simpáticos a Calvino e os últimos anos da vida do reformador foram mais gratificantes. O ano de 1559 foi especialmente importante, com a ocorrência de três eventos significativos: Calvino finalmente tornou-se cidadão de Genebra (até então era apenas um imigrante), publicou a edição definitiva das Institutas e inaugurou a sua sonhada Academia, voltada para a preparação de pastores, embrião da atual Universidade de Genebra.

Na vida pessoal, o reformador enfrentou diversas provações ao longo desses anos. Em 1549 perdeu Idelette, a esposa dedicada e leal que o havia acompanhado por dez anos. Durante toda a estada em Genebra, Calvino também lutou com constantes problemas de saúde dos mais diversos tipos. Uma coisa que impressiona os estudiosos é que um homem de saúde tão precária, assoberbado com tantas responsabilidades e desafios, tenha encontrado tempo e disposição para escrever uma quantidade tão impressionante de obras, todas marcadas por grande erudição e profundidade.

Um episódio lastimável da vida do reformador genebrino foi o seu envolvimento na execução de Miguel Serveto, em 1553. Serveto era um médico espanhol que havia escrito várias obras contra a doutrina da Trindade. Condenado à morte pela Inquisição em Lyons, na França, conseguiu fugir e foi parar em Genebra, onde foi preso, julgado e condenado à morte na fogueira pelas autoridades civis, sob a acusação de heresia. Calvino atuou como a principal testemunha de acusação. Esse evento lançou uma triste mancha sobre a sua reputação, mais tarde reconhecida e lamentada pelos seus seguidores. Infelizmente, esse fato tem levado muitos críticos a ignorarem as importantes contribuições positivas do reformador.

João Calvino faleceu com quase 55 anos no dia 27 de maio de 1564. Segundo suas instruções prévias, foi sepultado em um local não identificado no Cemitério de Plainpalais. Seu lema de vida, que aparece em muitas de suas obras, mostra uma mão segurando um coração e tendo em volta as seguintes palavras: Cor meum tibi offero, Domine, prompte et sincere (“O meu coração te ofereço, ó Senhor, de modo pronto e sincero”).[10]

A obra literária de Calvino

Um dos maiores legados de João Calvino ao movimento reformado e ao mundo foi a sua extraordinária produção literária. As obras do reformador de Genebra impressionam não somente pelo seu volume, mas por sua qualidade e erudição, notadamente nos campos da teologia e da interpretação bíblica. A totalidade dos escritos de Calvino ocupa nada menos que 59 grandes volumes da coleção conhecida como Corpus Reformatorum. Os frutos dessa reflexão encontram-se em seis categorias de escritos.[11]

(a) As Institutas: Calvino produziu oito edições em latim de sua obra magna e cinco traduções para o francês. A primeira edição (1536) tinha apenas seis capítulos e a última (1559) totalizou oitenta. Essa edição final equivale em tamanho ao Antigo Testamento somado aos evangelhos sinóticos e segue o padrão geral do Credo dos Apóstolos, tendo como objetivo ser um guia para o estudo das Escrituras. É composta de quatro livros: I – O conhecimento de Deus, o Criador; II – O conhecimento de Deus, o Redentor; III – A maneira como recebemos a graça de Cristo; IV – Os meios externos pelos quais Deus nos convida para a sociedade de Cristo.

(b) Comentários bíblicos: os comentários de Calvino são um importante complemento das Institutas. Ele escreveu comentários sobre todos os livros do Novo Testamento (exceto 2 e 3João e Apocalipse), bem como sobre o Pentateuco, Josué, Salmos e Isaías. Além disso, foram preservadas as suas preleções sobre todos os profetas.

(c) Sermões: em suas pregações, Calvino fazia a exposição sistemática dos livros da Bíblia. Ele costumava pregar sobre o Novo Testamento aos domingos e sobre o Antigo Testamento durante a semana. Seus sermões eram anotados taquigraficamente por um grupo de leais refugiados franceses. A série Corpus Reformatorum contém 872 sermões do reformador.

(d) Opúsculos e tratados: Calvino escreveu muitas obras de natureza apologética ao polemizar com católicos, anabatistas, libertinos e outros grupos. Alguns exemplos são a Resposta ao Cardeal Sadoleto, reações ao Concílio de Trento e a questão das relíquias. Outros escritos seus tratam de temas como a Ceia do Senhor, a doutrina da Trindade, a predestinação e o livre arbítrio.

(e) Escritos eclesiásticos: o reformador também produziu muitos textos voltados para diferentes aspectos e necessidades da vida da igreja (escritos catequéticos, confessionais, litúrgicos e outros). Dentre eles se destacam: Instrução e Confissão de Fé, Ordenanças Eclesiásticas, Catecismo da Igreja de Genebra, Saltério de Genebra, Forma das Orações e Cânticos Eclesiásticos e Confissão Galicana.

(f) Cartas: finalmente, Calvino produziu uma volumosa correspondência dirigida a outros reformadores, governantes de diferentes países, igrejas perseguidas, crentes encarcerados, pastores e colportores.

Um autor observa que o reformador de Genebra escreveu mais num espaço de 30 anos do que uma pessoa pode estudar e digerir adequadamente durante toda uma vida. Seus escritos nos mostram o teólogo, o exegeta, o polemista, o pastor e, acima de tudo, o cristão preocupado em glorificar a Deus e honrar a sua Palavra. Esse esforço contribuiu para a difusão do movimento reformado por quase toda a Europa. Por seus amplos contatos internacionais, Calvino ficou conhecido como o estadista da Reforma. O historiador Émile G. Léonard referiu-se a ele como o “fundador de uma civilização”.[12]

A igreja reformada na França

Uma das características do movimento reformado ou calvinista do século 16 foi a sua rápida e ampla difusão em muitas partes da Europa. Um dos primeiros países atingidos foi a França, a pátria de João Calvino, vizinha da Suíça, o berço do movimento. O precursor da Reforma Protestante na França foi o humanista Jacques Lefèvre D’Étaples (c. 1455-1536), que deu ênfase à autoridade das Escrituras, à justificação pela fé e a outros conceitos abraçados pelos protestantes. O movimento reformado francês surgiu na década de 1530, mas as primeiras congregações foram dispersas pela repressão religiosa. O rei Francisco I (1515-1547) e seu filho Henrique II (1547-1559) perseguiram duramente os reformados. Como já foi visto, ao publicar as Institutas em 1536, Calvino incluiu um prefácio em que apelava a Francisco I por tolerância para com os evangélicos.

Em 1555 foi organizada em Paris a primeira igreja reformada e nos anos seguintes muitas outras surgiram no interior do país. Isso possibilitou que em 1559 se reunisse nas proximidades da capital francesa o primeiro sínodo nacional da Igreja Reformada da França, representando centenas de comunidades. Essa foi a primeira vez em que uma igreja reformada ou presbiteriana organizou-se em âmbito nacional.[13] Esse sínodo aprovou uma importante declaração de fé, a Confissão Galicana, cujo texto básico foi redigido pelo próprio Calvino. No mesmo ano, o reformador fundou a Academia de Genebra, cujo principal objetivo era preparar pastores para as igrejas da França.

No mesmo ano em que foi fundada a igreja reformada em Paris (1555), o militar Nicolas Durand de Villegaignon seguiu para a América do Sul com algumas centenas de homens e fundou na baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, uma colônia que ficou conhecida como França Antártica. Um ano e meio mais tarde, chegou a essa colônia um grupo de reformados franceses, enviados pela Igreja Reformada de Genebra, que realizaram no dia 10 de março de 1557 o primeiro culto protestante nas Américas. No início do ano seguinte, alguns deles produziram a chamada “Confissão de Fé da Guanabara”.[14]

As igrejas calvinistas francesas eram compostas de artesãos, comerciantes e até mesmo de algumas famílias nobres, como os Bourbon e os Montmorency. Os reformados da França, conhecidos como “huguenotes”, estavam concentrados principalmente no oeste e no sudoeste do país, e recebiam o valioso apoio de Genebra. O crescimento do movimento reformado levou ao surgimento de duas facções político-religiosas: de um lado os huguenotes, tendo como líderes o almirante Gaspard de Coligny, Luís de Condé e Henrique de Navarra; do outro lado, o partido radical católico, concentrado no norte e no leste do país, e liderado pela poderosa família Guise-Lorraine.

Em 1559, o rei Henrique II morreu em uma competição esportiva, sendo sucedido no trono por três filhos, que receberam forte influência da mãe, a italiana Catarina de Médici. Durante o breve reinado de Francisco II (1559-1560), os Guise controlaram o governo. Em 1560, foi descoberta uma conspiração dos Bourbon contra eles e os rebeldes foram barbaramente executados. Quando Carlos IX (1560-1574) tornou-se rei, sendo ainda menor, Catarina assumiu a regência, mostrando-se inicialmente amistosa para com os huguenotes.

Em setembro de 1561, tentando apaziguar os ânimos entre os dois grupos, a rainha regente convocou as lideranças católicas e reformadas para um encontro que ficou conhecido como Colóquio de Poissy. A delegação huguenote foi chefiada por Teodoro Beza, pastor auxiliar de Calvino. O objetivo era a busca de um entendimento na área teológica, o que levaria à pacificação no âmbito político. O fracasso desse encontro abriu caminho para as guerras religiosas entre os dois grupos, que atormentaram a França durante várias décadas (1562-1598), dando início a um longo período de provações para as igrejas huguenotes.

A primeira dessas guerras teve início com o “massacre de Vassy”, em 1º de março de 1562, quando soldados do duque Francisco de Guise atacaram um grupo de huguenotes que realizavam um culto num celeiro, matando cerca de 60 pessoas. Seguiram-se outras duas guerras entre 1567 e 1570. No meio desse sofrimento, as igrejas reformadas continuavam crescendo em muitas regiões do país, mas esse crescimento gerava intensa preocupação em alguns círculos políticos e religiosos, produzindo novos confrontos. Nos conflitos geralmente ocorria o mesmo padrão: os huguenotes costumavam atacar edifícios católicos e destruir objetos sagrados; os católicos reagiam atacando e matando pessoas.

O episódio mais brutal dessas hostilidades foi o massacre do dia de São Bartolomeu. Em 18 de agosto de 1572 realizou-se em Paris o casamento do príncipe protestante Henrique de Navarra com a princesa Margarete de Valois, filha de Catarina de Médici e irmã do rei Carlos IX. Toda a elite dos huguenotes foi à capital a fim de participar das festividades. No dia 22, o almirante Gaspard de Coligny sofreu um atentado, mas sobreviveu. Os huguenotes ficaram indignados e exigiram providências por parte do governo. Esse acontecimento foi o estopim do massacre. No dia seguinte, o rei, seu irmão Henrique (duque de Anjou), Catarina e seus conselheiros concluíram que os líderes huguenotes deviam ser eliminados.

Na madrugada do domingo 24 de agosto de 1572, sob o comando de Henrique, duque de Guise, as tropas reais assassinaram o almirante Coligny e outros líderes. Estimulados por isso, milicianos e extremistas começaram uma prolongada orgia de saques e matanças, trucidando indiscriminadamente homens, mulheres e crianças. Logo em seguida os massacres se estenderam a outras cidades. Uma estimativa conservadora calcula que houve 3.000 vítimas em Paris e outras 8.000 no interior do França. O papa Gregório XIII exultou, lançando uma medalha especial e contratando a produção de vários afrescos para comemorar o evento.

Muitos protestantes conseguiram escapar. Alguns se refugiaram nas fortalezas de Sancerre e La Rochelle e milhares fugiram para Genebra, Basileia, Estrasburgo ou Londres. Infelizmente, muitos outros abjuraram a sua fé. Teodoro Beza comentou: “O número de apóstatas é quase impossível de contar”. O massacre do dia de São Bartolomeu deu início a mais uma guerra, a quarta, que só terminou com uma trégua em 1574. Nesse ano subiu ao trono Henrique III (1574-1589), em cujo reinado ocorreram outras três guerras.

Em 1589, tornou-se rei da França o príncipe protestante Henrique de Navarra, com o título de Henrique IV (1589-1610). Era filho da piedosa calvinista Jeanne D’Albret. Quatro anos depois, Henrique, que era famoso por suas vacilações religiosas, converteu-se ao catolicismo para assegurar a posse do trono. Segundo consta, ele teria dito: “Paris vale uma missa”. Finalmente, em 1598, Henrique resolveu pôr um fim às guerras de religião e beneficiou os seus antigos correligionários com o Tratado de Nantes, que concedeu liberdade civil e religiosa aos huguenotes, exceto em algumas cidades. Os huguenotes voltaram a prosperar e a crescer até que o Edito de Nantes foi revogado pelo rei Luís XIV, em 1685, surgindo novo período de intensas provações para os reformados franceses – a “igreja no deserto”. Milhares deixaram o seu país e emigraram para a Holanda, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, beneficiando grandemente essas nações.[15]


[1] Ver: MATOS, Alderi S. Fundamentos da teologia histórica. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 148s.
[2] WALTON, Robert C. “Zwingli, Ulrich”. In: DOUGLAS, J. D. (Org.). The New International Dictionary of the Christian Church. 2ª ed. Grand Rapids, MI: Zondervan, 1978, p. 1073.
[3] Ibid.
[4] Christian History, Vol. 3, Nº 1 (1984), p. 7. Ver também: MCNEILL, John T. The history and character of Calvinism. London: Oxford University Press, 1967, p. 52.
[5] WALKER, Williston et al. A history of the Christian church. 4ª ed. New York: Charles Scribner’s Sons, 1985, p. 446s.
[6] Ibid., p. 472.
[7] Ibid., p. 473.
[8] KEE, Howard Clark et al. Christianity: a social and cultural history. New York: Macmillan, 1991, p. 372.
[9] Ibid., p. 382s.
[10] A bibliografia sobre Calvino é gigantesca. Algumas obras relevantes sobre sua carreira e obra são: BEEKE, Joel (Org.). Calvino para hoje. São Paulo: Cultura Cristã, 2017; BIÉLER, André. O pensamento econômico e social de Calvino. 2ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2012; FARIA, Eduardo Galasso (Org.). João Calvino: textos escolhidos. São Paulo: Pendão Real, 2008; GRAHAM, W. Fred. The constructive revolutionary: John Calvin and his socio-economic impact. Atlanta, GA: John Knox Press, 1978; HALL, David W. Calvino em praça pública. São Paulo: Cultura Cristã, 2017; MCGRATH, Alister. A vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. SABINO, Felipe (Org.). Calvino: mestre da igreja. Brasília, DF: Monergismo, 2009; WALLACE, Ronald. Calvino, Genebra e a Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
[11] GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. Ed. rev. e ampliada. São Paulo: Vida Nova, 2017, p. 217-221.
[12] LÉONARD, Émile G. Historia general del protestantismo. 4 vols. Madrid: Ediciones Península, 1967, vol. 1, p. 263. Original: Histoire générale du protestantisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1961.
[13] LEITH, John H. An introduction to the Reformed tradition. Atlanta, GA: John Knox, 1981, p. 37.
[14] MATOS, Alderi S. “The Guanabara Confession of Faith”. Unio cum Christo, Vol. 1, Nº 1-2 (Fall 2015): 133-143. Ver também: LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte e São Paulo: Itatiaia e Edusp, 1980; CRESPIN, Jean. A tragédia da Guanabara. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.
[15] Para a história do movimento reformado na França, ver: COURTHIAL, Pierre. “A idade de ouro do calvinismo na França”. In: REID, W. Stanford (Org.). Calvino e sua influência no mundo ocidental. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 87-109; MCNEILL, History and character of Calvinism, p. 237-254.

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