A igreja reformada na Holanda
Durante boa parte do século 16, os Países Baixos estiveram sob o poder dos soberanos Habsburgos, primeiro com o imperador alemão Carlos V e, a partir de 1555, com seu filho Filipe II, rei da Espanha. Os esforços em prol de reformas religiosas nessa região haviam surgido ainda nos séculos 14 e 15, com movimentos como os Irmãos da Vida Comum. Tais movimentos tinham uma teologia agostiniana e davam ênfase ao estudo da Bíblia, à vida devocional e à educação. A partir de 1520, surgiram as primeiras influências luteranas e depois anabatistas, que enfrentaram intensa repressão por parte das autoridades civis e eclesiásticas.
A fé reformada começou a se fazer sentir em 1523, por meio de contatos do estudioso holandês Hinne Rode com o reformador suíço Ulrico Zuínglio, e no final da década de 1550 já havia se implantado solidamente, principalmente nas regiões de língua francesa ao sul. Muitos neerlandeses foram influenciados por Calvino em Estrasburgo e Genebra e pelo reformador polonês Jan Laski em Emden e Londres. Em 1561, o belga Guido de Brès escreveu uma confissão de fé “para os fiéis que estão dispersos por todos os Países Baixos”. Esse documento, conhecido como Confissão Belga, foi adotado por um sínodo em Antuérpia, em 1566, vindo a se tornar o principal padrão doutrinário dos calvinistas holandeses.[1] Seu autor foi martirizado em 1567.
O primeiro sínodo reformado holandês reuniu-se em Turcoing em 1563, mas os dois primeiros sínodos gerais ocorreram em Wesel (1568) e Emden (1571), ambos fora das fronteiras do país. Este último foi especialmente importante, porque efetivamente uniu todas as congregações em uma igreja nacional, adotando três documentos doutrinários: a Confissão Belga, o Catecismo de Genebra (para as igrejas de idioma francês) e o Catecismo de Heidelberg (para as de língua holandesa). Seguindo o modelo francês, havia quatro níveis administrativos: consistórios locais, classes (presbitérios), sínodos regionais e sínodo nacional.[2]
O nascimento da igreja reformada holandesa coincidiu com um período de intensas lutas entre os neerlandeses e seu soberano, o rei católico espanhol Filipe II. Este havia declarado que preferia morrer cem mortes a ser um rei de hereges. Em 1566, os nacionalistas entraram em guerra contra os espanhóis. No ano seguinte, Filipe enviou o implacável Duque de Alba para destruir a heresia e sufocar a resistência. A ditadura que se seguiu (1567-1573) custou milhares de vidas, mas não conseguiu vencer a rebelião. Sob a liderança de Guilherme de Orange, que abraçou o calvinismo em 1573, a Holanda declarou a sua independência em 26 de julho de 1581. Guilherme foi assassinado por um fanático em 1584, sendo sucedido por seu filho Maurício, que consolidou a independência da nova república.
Em consequência das lutas político-religiosas, os Países Baixos se dividiram em três nações: Bélgica e Luxemburgo (católicas) e Holanda (majoritariamente protestante). Sob o influxo da fé reformada e da recém-conquistada autonomia política, a Holanda se tornou rapidamente uma das nações mais prósperas da Europa, criando um império comercial que se estendeu por todos os continentes. Tornou-se também uma das regiões de Europa marcadas por maior tolerância religiosa, atraindo dissidentes e refugiados de diversos países.
No início do século 17, a igreja reformada holandesa foi abalada por uma grande controvérsia teológica desencadeada pelos ensinos de Tiago Armínio (1560-1609), pastor e professor da Universidade de Leyden. Afastando-se da posição calvinista clássica acerca da eleição, ele afirmou a cooperação da vontade humana na salvação (sinergismo). Após a sua morte, seus simpatizantes elaboraram um documento básico conhecido como Remonstrância (1610), contendo uma síntese dos “cinco pontos do arminianismo” (a eleição baseia-se na presciência; Cristo morreu por todos; o novo nascimento é condição para a prática do bem; a graça não é irresistível; os fiéis devem esforçar-se para permanecer na fé).[3] Os defensores da posição ortodoxa eram os gomaristas, partidários de Francisco Gomarus, outro professor em Leyden. Os conflitos entre os dois partidos foram tão graves a ponto de temer-se uma guerra civil.
Nesse contexto, o Parlamento convocou o Sínodo de Dort, que se reuniu de novembro de 1618 a maio de 1619 e marcou o triunfo da posição calvinista. Além dos holandeses, esse sínodo contou com a participação de teólogos reformados ingleses e alemães, tendo aprovado os célebres “cinco pontos do calvinismo”, que foram sintetizados nas seguintes expressões: a) Depravação total; b) Eleição incondicional; c) Expiação limitada; d) Graça irresistível ou Vocação eficaz; e) Perseverança dos santos. Em inglês, as iniciais dessas expressões formam a palavra “tulip”; daí serem os cinco pontos conhecidos como a “tulipa do calvinismo”. Apesar de derrotados, os arminianos eventualmente tiveram permissão para organizar a sua própria Igreja Remonstrante. Sua teologia haveria de exercer forte influência em outros países, como a Inglaterra de João Wesley e mais tarde os Estados Unidos.
Ao longo do século 17, a Holanda experimentou um grande florescimento da teologia e da filosofia. Grandes universidades como as de Leyden e Utrecht se tornaram centros de erudição calvinista, atraindo estudantes de toda a Europa. Dois teólogos destacados desse período da chamada “ortodoxia reformada” foram Johannes Cocceius (†1669) e Gisbertus Voetius (†1676). Outra área de vitalidade foi a arte, na qual se notabilizou o grande pintor Rembrandt van Rijn (†1669). A jovem república também prosperou economicamente e estendeu a sua influência política e comercial a várias partes do mundo. Entre as regiões colonizadas pelos neerlandeses no século 17 estiveram o Nordeste do Brasil (1630-1654) e a Indonésia. Nesta última viveu João Ferreira de Almeida (1628-1691), que fez a primeira tradução da Bíblia completa para o português. Almeida foi pastor de uma grande congregação de língua portuguesa naquela colônia, filiada à Igreja Reformada Holandesa.[4]
Nos séculos seguintes, o movimento reformado holandês sofreu o impacto de diversos fatores nas áreas política (guerras, relações internacionais), intelectual (escolasticismo, Iluminismo) e religiosa (pietismo, liberalismo, avivamentos). No século 19, ocorreram dois cismas que resultaram no surgimento de novas denominações. Uma figura importante foi o pastor, teólogo e político Abraham Kuyper (1837-1920), líder da nova Igreja Reformada (Gereformeerde Kerk), fundador da Universidade Livre de Amsterdã e primeiro-ministro da Holanda de 1901 a 1905. Apesar de muitas vicissitudes, os reformados holandeses continuam dando importantes contribuições ao seu país e a outras nações ao redor do mundo.
A igreja reformada alemã
Como o movimento reformado teve início, em Zurique, na Suíça alemã, seria natural que em pouco tempo chegasse ao país vizinho, a Alemanha. Todavia, somente mais tarde isso veio a acontecer. Uma das razões para tanto foi a forte presença do luteranismo no chamado Sacro Império Germânico. A Reforma em Estrasburgo, liderada por Martin Butzer (1491-1551), teve relações amistosas com os reformados suíços. O próprio Calvino ali viveu três anos felizes e produtivos (1538-1541). Todavia, em 1548 Butzer (Bucer) foi forçado a deixar a cidade, passando os seus últimos anos de vida na Inglaterra. Após a Paz de Augsburgo, o luteranismo foi solidamente estabelecido em Estrasburgo. Sob a liderança do príncipe Filipe, o território de Hesse, mais ao norte, também recebeu influências reformadas. Em 1529, Lutero e Zuínglio haviam se encontrado no famoso Colóquio de Marburg, no qual concordaram em catorze pontos doutrinários, mas divergiram com relação à Ceia do Senhor. Após a Paz de Augsburgo, as influências reformadas foram igualmente suprimidas.
A região da Alemanha que recebeu maior influxo da fé reformada foi o Palatinado (Pfalz), a nordeste de Estrasburgo, sob a liderança do príncipe Oto Henrique e do seu sucessor, o eleitor Frederico II (1559-1576). Este governante afirmou a Confissão de Augsburgo (luterana), como exigia a Paz de Augusburgo, mas também convidou teólogos reformados para se fixarem no Palatinado. Entre eles estavam Zacarias Ursino e Gaspar Oleviano, considerados os principais autores do Catecismo de Heidelberg (1563). Esse notável documento, que uniu elementos reformados e um luteranismo melanctoniano moderado, tornou-se não só a confissão de fé desse território, mas a mais importante declaração doutrinária da Igreja Reformada Alemã. O catecismo é constituído de 129 perguntas e respostas, cuja sequência é baseada na epístola aos Romanos. Possui três partes: (a) Nosso pecado e culpa; (b) Nossa redenção e liberdade; (c) Nossa gratidão e obediência. Seu tom caloroso e pessoal, seu caráter bíblico e prático e seu propósito conciliador têm feito dele um documento grandemente apreciado, sendo adotado por muitas igrejas reformadas em diferentes países.[5]
Após a morte de Frederico II, o luteranismo foi restabelecido no Palatinado, mas no reinado de seu filho João Casimir (1583-1592) a fé reformada foi novamente adotada. No século 17 e início do século 18, os reformados do Palatinado sofreram intensamente devido a guerras e repressão religiosa. Em 1727, muitos deles foram para a América do Norte, liderados por George Michael Weiss. Em cinco anos, quinze mil refugiados do Palatinado já haviam se estabelecido em vários pontos da Pensilvânia, onde organizaram em 1746 a sua própria igreja, sob a liderança de Michael Schlatter. Na Alemanha, outras comunidades reformadas surgiram em Nassau, Bremen, Wesel, Brandemburgo e diferentes regiões do país. Em 1817, por ocasião do terceiro centenário da Reforma Protestante, algumas igrejas territoriais luteranas e reformadas formaram confederações, arranjo esse que subsiste até os dias de hoje. Uma das primeiras igrejas protestantes do Brasil foi a Comunidade Evangélica Alemã-Francesa, fundada no Rio de Janeiro em 1827, que uniu conscientemente luteranos e calvinistas em uma só comunidade de fé e adoração.[6]
As igrejas reformadas no Leste Europeu
A obra teológica, a liderança e os contatos de João Calvino contribuíram para a grande difusão da Reforma Suíça na Europa do século 16. Uma das regiões atingidas foi o leste do continente, principalmente em países que se ressentiam de interferências germânicas. As influências reformadas alcançaram a Polônia ainda durante a vida de Calvino. O rei Sigismundo II (1548-1572) correspondeu-se com esse reformador e leu as Institutas com admiração. O maior líder do protestantismo polonês foi o calvinista Jan Laski (1499-1560), que pastoreou igrejas de refugiados em Emden (Holanda) e Londres. Sua obra Forma e Método Integral do Culto na Igreja dos Estrangeiros (1550) foi muito influente. Ele voltou para a Polônia em 1556 a fim de organizar as igrejas reformadas, mas teve êxito limitado. Participou da tradução da Bíblia para o polonês, publicada em 1563. O movimento reformado experimentou grande crescimento, mas a Contrarreforma, mediante a ação dos jesuítas e dos reis, suprimiu o protestantismo polonês. Após vários séculos de vicissitudes, existe hoje na Polônia uma pequenina Igreja Reformada Evangélica, que em 1965, sob o regime comunista, tinha apenas 4.900 membros batizados, 6 pastores e 45 presbíteros.
Na Boêmia (antiga Tchecoslováquia), a Reforma Protestante se beneficiou da obra do pré-reformador Jan Hus (1369-1415) e seus sucessores. A maior parte dos hussitas se tornaram luteranos, mas a fé reformada se fez presente a partir da década de 1540. Os conflitos políticos e religiosos desse país foram o estopim da horrenda Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Apesar das grandes dificuldades passadas e recentes, até hoje existe nessa região uma comunidade reformada, representada por duas denominações: a Igreja Evangélica dos Irmãos Tchecos e a Igreja Reformada da Eslováquia.
Na Hungria, o luteranismo foi passível de pena de morte a partir de 1523, uma evidência de sua presença antiga naquele país. Todavia, a sua associação com os dominadores políticos alemães dificultou o seu crescimento. A fé reformada não sofria essa limitação e assim foi prontamente aceita pelos setores nacionalistas. Estevão Bocskay, um patriota que libertou o seu povo dos turcos e do Sacro Império Germânico, era calvinista, e sua obra é lembrada no Monumento Internacional da Reforma, em Genebra. A comunidade reformada húngara criou um sistema de governo que incluía bispos; porém, estes possuíam um status superior somente de jurisdição, não de ordem. Em 1970, a Igreja Reformada da Hungria contava com aproximadamente 1,5 milhão de membros, 2.200 igrejas e congregações, 1.358 pastores e 18.000 presbíteros. Durante muitos anos existiu em São Paulo uma igreja reformada húngara.
Por causa da proximidade com a Hungria e a presença de imigrantes desse país, a Romênia, particularmente a região da Transilvânia, também veio a ter uma grande comunidade reformada. Em 1963, a Igreja Reformada da Romênia tinha quase 700 mil membros, 740 igrejas, 738 pastores e 11.800 presbíteros. Alguns outros países do leste europeu têm ainda hoje pequenas igrejas reformadas. São eles a Ucrânia (na região dos montes Cárpatos, no sudeste do país), a antiga Iugoslávia, a Lituânia e a Letônia.
O presbiterianismo na Escócia
O primeiro pregador do protestantismo na Escócia foi Patrick Hamilton, um jovem erudito, simpatizante de Lutero, que foi morto na fogueira em 1528. O pioneiro da fé reformada foi George Wishart, um jovem culto que estudou na Suíça e lecionou na Universidade de Cambridge. Condenado por heresia, foi igualmente queimado vivo, em 1546. Sua vida, pregação e morte causaram vívida impressão no povo escocês. O líder seguinte foi John Knox, nascido por volta de 1514, que havia sido guarda-costas de Wishart. Depois de passar um ano e meio como escravo em um navio francês, ele fugiu para a Inglaterra, onde se tornou capelão do jovem rei Eduardo VI. No reinado sangrento de Maria Tudor (1553-1558), foi para o continente e passou três anos em Genebra, onde estudou aos pés de Calvino. Pastoreou uma igreja de refugiados de língua inglesa e retornou à Escócia em 1559, tornando-se o líder da Reforma em seu país. Naqueles dias conturbados, ele clamou: “Ó Deus, dá-me a Escócia ou morrerei!”
Em agosto de 1560, sob a liderança de Knox, o Parlamento renunciou ao catolicismo e adotou a fé reformada para a Escócia. Em poucos dias, Knox e outros quatro homens redigiram a Confissão Escocesa, nitidamente calvinista, que foi prontamente adotada pelo Parlamento. Em dezembro reuniu-se a primeira Assembleia Geral da Igreja Presbiteriana da Escócia, que redigiu o Livro de Disciplina ou constituição da igreja. Compareceram apenas seis pastores e 36 presbíteros. Na época, havia somente doze ministros protestantes em todo o país. No ano seguinte, subiu ao trono a rainha Maria Stuart, que se esforçou por restaurar o catolicismo, sendo firmemente combatida por Knox. Forçada a abdicar, Maria fugiu para a Inglaterra, onde foi executada muitos anos mais tarde no reinado de sua prima Elizabete I. Knox continuou o seu trabalho de reformador e pregador até a sua morte em 1572. Diante de seu túmulo, um líder declarou: “Aqui jaz alguém que nunca temeu a face do homem”.[7]
O próximo líder da Igreja da Escócia foi Andrew Melville (1545-1622), que a tornou plenamente presbiteriana mediante uma revisão do primeiro Livro de Disciplina. Ele era dotado de grande cultura, conhecia vários idiomas e estudou o calvinismo em Genebra. Regressando para a Escócia em 1574, tornou-se o dirigente da Universidade de Glasgow e depois da Universidade de Saint Andrews. Travou lutas amargas com o jovem rei Tiago VI, que em 1603 também se tornou Tiago I da Inglaterra. Filho de Maria Stuart, ele havia sido educado como presbiteriano, mas acabou se tornando grande adversário dos reformados nos dois países, favorável que era ao sistema episcopal. Prendeu Melville na Torre de Londres por quatro anos e depois o baniu do país. Melville foi para Sedan, na França, onde lecionou em uma escola de teologia até o fim da vida. Um biógrafo da época disse: “A Escócia jamais recebeu maior benefício das mãos de Deus do que esse homem”.
A teologia reformada continuou a dominar a história da Igreja da Escócia, mas houve uma longa luta pela supremacia entre os sistemas presbiteriano e episcopal no final do século 16 e início do século seguinte. O presbiterianismo foi vigorosamente reafirmado em 1638, sob a liderança de Alexander Henderson, mas o episcopado voltou a ser imposto à igreja entre 1660 e 1689, quando ela tornou-se definitivamente presbiteriana.
Quando o rei Carlos I (1625-1649) e William Laud, o arcebispo de Cantuária, tentaram impor à Igreja da Escócia a forma de governo e a liturgia da Igreja Anglicana, os escoceses se uniram em um Pacto Nacional, comprometendo-se a defender até a morte o presbiterianismo. Carlos moveu guerra contra os escoceses. Precisando de recursos, convocou eleições parlamentares, que resultaram em um parlamento puritano na Inglaterra. Esse parlamento convocou a Assembleia de Westminster (1643-1649), que teve a participação de uma pequena, mas influente delegação de teólogos escoceses (Alexander Henderson, Robert Baillie, George Gillespie e Samuel Rutherford). Concluídos os textos, a Igreja da Escócia os adotou oficialmente, deixando de lado os seus antigos documentos da época de John Knox. Por meio dos escoceses, os Padrões de Westminster foram levados para outras partes do mundo.
Carlos II (1660-1685) se esforçou ainda mais que seu pai para sujeitar a Igreja da Escócia ao sistema episcopal. Os presbiterianos outra vez se coligaram em um Pacto Nacional, ficando conhecidos como “covenanters” (pactuantes), e foram submetidos a horríveis perseguições. Milhares de homens, mulheres e crianças foram mortos por causa da sua fé. Em 1689, no reinado de Guilherme e Maria, foi aprovado um decreto de tolerância que propiciou grande liberdade religiosa. Desde a união parlamentar das duas nações em 1707, os monarcas ingleses têm jurado manter o presbiterianismo na Escócia, como fez recentemente o rei Carlos III.
Um novo problema surgiu em 1712, quando o Parlamento aprovou a Lei do Patronato Leigo, pela qual os grandes proprietários receberam o direito de nomear os pastores das igrejas locais (essa lei só seria revogada em 1874). Foi um golpe no governo presbiteriano representativo e causou muitas controvérsias e divisões nos 130 anos seguintes. Em 1843, Thomas Chalmers e outros 472 pastores (mais de um terço de todos os ministros) saíram da Igreja da Escócia e criaram a Igreja Livre da Escócia. Esse evento ficou conhecido como a Grande Ruptura. A Igreja Livre tornou-se grande, com quase meio milhão de membros, e produziu maior número de pastores capazes e piedosos do que os outros ramos. Em 1847, alguns grupos pequenos formaram a Igreja Presbiteriana Unida. Em 1900, a Igreja Livre e a Igreja Unida se fundiram, criando a Igreja Livre Unida da Escócia. Finalmente, em 1929 esta se uniu à igreja majoritária, mantendo-se o nome Igreja da Escócia (“Kirk”). Essa igreja congregou a grande maioria dos presbiterianos escoceses (1,25 milhão), sendo que somente 50 mil permaneceram nos outros grupos. Ela tem 12 sínodos, 64 presbitérios e 4 faculdades de teologia ligadas às antigas universidades escocesas. Inclui maior proporção da população do que qualquer outra igreja protestante no mundo de língua inglesa.
Associando educação e piedade, a Igreja da Escócia exerceu grande influência sobre o cristianismo mundial, bem como sobre a comunidade reformada. Suas universidades têm sido uma fonte de erudição sólida e eficaz. Imigrantes e missionários escoceses difundiram o presbiterianismo em muitos lugares do mundo. A Igreja da Escócia é mãe das Igrejas Presbiterianas da Irlanda, Canadá, Austrália e África do Sul, bem como de vários ramos do presbiterianismo americano e de igrejas em campos missionários (nos anos 1970, havia trabalho em 21 campos no exterior). Ela produziu maior número de grandes pregadores, eruditos e escritores que qualquer outro grupo presbiteriano no mundo. Hoje essa grande e histórica igreja passa por dolorosa crise, debilitada pelo secularismo e pelo liberalismo teológico.
A fé reformada na Inglaterra
A história do movimento reformado na Inglaterra apresenta dois fenômenos com vastas implicações, um deles de caráter negativo e o outro positivo. No aspecto negativo, a Inglaterra foi o primeiro país em que o calvinismo se dividiu em várias correntes, devido a diferentes entendimentos sobre a forma de governo da igreja. O elemento positivo foi a realização da Assembleia de Westminster, que produziu os documentos doutrinários mais influentes da tradição reformada.
Até 1534, a Inglaterra foi solidamente católica romana. Naquele ano, o rei Henrique VIII, que havia subido ao trono em 1507, rompeu com Roma e criou uma igreja nacional inglesa, a Igreja Anglicana, ainda fortemente católica, mas não submissa ao papa. Desde o século 14, com o pré-reformador John Wyclif e seus simpatizantes, os lolardos, havia surgido um vigoroso movimento de valorização das Escrituras e de protesto contra os desvios da igreja tradicional. Com o advento da Reforma Protestante, as ideias luteranas logo chegaram ao país. Todavia, algum tempo depois a fé reformada obteve maior aceitação.
No reinado de Eduardo VI (1547-1553), filho e sucessor de Henrique, a Igreja Anglicana se tornou protestante e as influências reformadas se fizeram sentir de modo crescente. Martin Bucer, o reformador de Estrasburgo, passou os seus últimos anos na Inglaterra, e o reformador polonês Jan Laski foi pastor da Igreja de Estrangeiros em Londres. João Calvino correspondeu-se com o arcebispo de Cantuária, Thomas Cranmer, com o jovem rei Eduardo e com Somerset, o lorde protetor. Dois documentos fundamentais redigidos por Cranmer, o Livro de Oração Comum e os Quarenta e Dois Artigos,demonstraram claras influências reformadas.
Todavia, a marca mais profunda deixada pelo calvinismo na Inglaterra foi o movimento conhecido como puritanismo. Os puritanos eram os pastores e leigos calvinistas ingleses que insistiam que a Igreja Anglicana devia se tornar mais “pura”, isto é, mais bíblica, em sua teologia, culto e forma de governo. Esse movimento produziu um vasto e duradouro impacto na sociedade inglesa devido às suas ênfases principais: estudo sério das Escrituras, pregação expositiva e doutrinária, valorização da experiência religiosa e da santificação, visão abrangente da vida sob o senhorio de Deus.
No reinado de Maria, “a Sanguinária” (1553-1558), houve um vigoroso esforço no sentido de restaurar o catolicismo romano. Quase três centenas de protestantes foram executados na fogueira e muitos outros se refugiaram no continente, em cidades como Frankfurt, Zurique e Genebra. Sob Elizabete I (1558-1603), outra filha de Henrique VIII, o anglicanismo adquiriu os seus traços definitivos, com a crescente rejeição da teologia reformada. Os puritanos experimentaram uma repressão crescente por parte dessa poderosa rainha e de seus dois sucessores imediatos, Tiago I e Carlos I.
Infelizmente, em meio às tremendas dificuldades que enfrentavam, os puritanos ficaram ainda mais enfraquecidos por causa de sua falta de unanimidade na questão da forma de governo eclesiástico. Enquanto muitos deles eram presbiterianos, outros eram adeptos do sistema congregacional e alguns poucos queriam preservar o episcopalismo. O puritanismo atingiu o seu ponto culminante na década de 1640, quando os puritanos controlaram o parlamento inglês e convocaram a célebre Assembleia de Westminster.
A Assembleia de Westminster
O calvinismo inglês atingiu o seu apogeu com a realização da Assembleia de Westminster, de 1643 a 1649. As circunstâncias desse grande evento são deveras interessantes. O rei Carlos I reinou simultaneamente sobre a Inglaterra e a Escócia (1625-1649). Embora tivesse sido criado como presbiteriano, tornou-se um ferrenho defensor do sistema episcopal, como todos os reis da época, e tentou impor esse sistema à Igreja da Escócia. Os escoceses se rebelaram, assinaram um Pacto Nacional e entraram em guerra contra o rei. Necessitando de recursos para enfrentá-los, Carlos convocou eleições parlamentares na Inglaterra, que resultaram, para sua grande frustração, em um parlamento majoritariamente puritano, ou seja, calvinista. Diante das tentativas de Carlos no sentido de dissolvê-lo, o parlamento também entrou em guerra contra o rei.
Foi nesse contexto de guerra civil que o parlamento inglês convocou a Assembleia de Westminster para reformar a Igreja da Inglaterra. A Assembleia era composta de 121 dos ministros mais cultos e piedosos do país, além de 30 membros do parlamento. Os trabalhos tiveram início no dia 1º de julho de 1643, na majestosa Abadia de Westminster, em Londres. Pouco depois, o parlamento, enfrentando dificuldades na guerra contra o rei, precisou recorrer ao auxílio dos escoceses. Por exigência destes, os dois grupos assinaram um Pacto Solene, mediante o qual a Igreja da Escócia teve o direito de enviar alguns representantes à Assembleia, os quais ofereceram valiosas contribuições.
Ao longo de vários anos, esses pastores calvinistas, muitos dos quais presbiterianos, elaboraram de modo paciente e criterioso vários documentos importantes nas áreas doutrinária, litúrgica e administrativa. Esses textos, que ficaram conhecidos como os “Padrões Presbiterianos”, são os seguintes: Diretório do Culto Público a Deus, Forma de Governo Eclesiástico e Ordenação, Confissão de Fé, Catecismos Maior e Breve e um Saltério.[8] Uma vez concluído pela assembleia, cada documento era enviado ao parlamento para discussão e ratificação. Com a aprovação oficial desses documentos, a Igreja da Inglaterra tornou-se presbiteriana. A tarefa principal da assembleia foi concluída em 1649, mas os trabalhos prosseguiram até 1653 com vistas ao exame de pregadores e à reforma do púlpito inglês.[9]
Sob a liderança de Oliver Cromwell, as tropas parlamentares derrotaram o rei Carlos I, que foi executado. Todavia, nos anos seguintes manifestou-se o ponto fraco do calvinismo inglês. Cromwell e o exército, assim como muitos pastores, eram congregacionais. Em 1660, a monarquia foi restaurada sob Carlos II e a Igreja da Inglaterra voltou a ser episcopal. Dois anos depois, cerca de dois mil ministros puritanos foram expulsos de suas igrejas, seguindo-se um longo período de intolerância e cerceamento. Rejeitados na sua terra de origem, os Padrões Presbiterianos foram calorosamente abraçados pelos escoceses. Por meio da imigração e do esforço missionário, esses padrões, especialmente os de natureza doutrinária (Confissão de Fé e Catecismos), foram levados para a Irlanda do Norte, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Brasil e outros países. Por mais de 350 anos, eles têm sido os documentos confessionais mais aceitos pelos presbiterianos ao redor do mundo.
O presbiterianismo na Irlanda
Durante muito tempo os irlandeses abraçaram o cristianismo celta, independente de Roma, cujo primeiro grande líder foi Patrício, no quarto século da era cristã. A partir de 1172, sob a influência da Inglaterra, o país tornou-se fortemente católico romano. No século 16, quando o rei Henrique VIII criou a Igreja Anglicana, separada de Roma, os irlandeses recusaram-se a aceitá-la. Seguiu-se um longo período de guerras em que o norte da ilha ficou praticamente despovoado. Foi então que o rei Tiago I resolveu colonizar essa região por meio de imigrantes escoceses e ingleses, criando em 1606 a Colônia de Ulster. Esses imigrantes eram calvinistas e muitos deles presbiterianos. Após uma rebelião em que os católicos massacraram grande número de presbiterianos (1641), o parlamento inglês enviou dez mil soldados à região, quase todos escoceses. Os capelães das tropas organizaram igrejas e promoveram a eleição de oficiais. Finalmente, no dia 10 de junho de 1642, em Carrickfergus, perto de Belfast, foi organizado o primeiro presbitério da Irlanda. Em 1659 já havia cinco presbitérios.
Durante quase todo o século 17 e início do século 18, os “escoceses-irlandeses” sofreram com as ações repressivas de diversos monarcas ingleses nos aspectos político, econômico e religioso. Além disso, experimentaram calamidades naturais como secas rigorosas e a fome e pobreza resultantes. Com isso, muitos deles resolveram emigrar para a América do Norte, principalmente a partir de 1717. Segundo uma estimativa conservadora, até a independência dos Estados Unidos, em 1776, pelo menos 250.000 cruzaram o Atlântico para o Novo Mundo (algumas estatísticas falam em 500.000). Em 1706, sob a liderança de Francis Makemie, um pastor emigrado da Irlanda, foi organizado o primeiro concílio presbiteriano dos Estados Unidos, o Presbitério de Filadélfia. Os escoceses-irlandeses radicados em Nova Jersey, Pensilvânia, Virgínia e nas Carolinas do Norte e do Sul foram os principais responsáveis pela formação da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América (PCUSA). Eles também foram o principal grupo que lutou pela independência da nova nação.
No século 18, as divisões ocorridas na Igreja da Escócia afetaram o presbiterianismo irlandês. Por cerca de um século existiram lado a lado o histórico Sínodo de Ulster e o Sínodo da Secessão, que voltaram a se unir em 1840, formando a Assembleia Geral da Igreja Presbiteriana da Irlanda. A Irlanda do Norte separou-se do restante do país em 1921, ficando ligada ao Reino Unido. Em 1970, a Igreja Presbiteriana tinha uma comunidade total de 400.000 aderentes, das quais 140.000 eram membros comungantes. Contava com 567 igrejas locais, 537 pastores e 5.917 presbíteros. A cidade de Belfast, com meio milhão de habitantes, é o principal centro presbiteriano. Existem duas escolas de teologia, uma em Belfast e outra em Londonderry.
Como foi observado, dois fatores prejudicaram o crescimento dessa igreja no passado: a migração de milhares de membros para outras terras e as divisões e discórdias causadas por questões doutrinárias e litúrgicas. Apesar desses reveses, talvez até por causa deles, a Igreja Presbiteriana da Irlanda é hoje uma igreja forte, unida e conservadora.
[1] LEITH, Introduction to the Reformed tradition, p. 38.
[2] MCNEILL, History and character of Calvinism, p. 261.
[3] Ibid., p. 265. Ver também: BETTENSON, Documentos da igreja cristã, p. 372-374.
[4] Sobre Almeida, ver: HALLOCK, Edgar F.; SWELLENGREBEL, Ph. D. A maior dádiva e o mais precioso tesouro. Rio de Janeiro: Juerp, 2000;
[5] Ver: BIERMA, Lyle D. Introdução ao Catecismo de Heidelberg. São Paulo: Cultura Cristã, 2010.
[6] Ver: REILY, Duncan A. História documental do protestantismo no Brasil. São Paulo: Aste, 1993, p. 55.
[7] Ver: LUZ, Waldyr Carvalho. John Knox: o patriarca do presbiterianismo. São Paulo: Cultura Cristã, 1999. MATOS, Alderi S. “John Knox e a reforma escocesa”. In: BITUN, Ricardo (Org.). A Reforma Protestante. São Paulo: Hagnos, 2017, p. 7-19.
[8] Ver: MARTINS, Walter Graciano (Org.). A Confissão de Fé, o Catecismo Maior, o Breve Catecismo: exemplar do líder. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1991; DIXHOORN, Chad Van. Guia de estudos da Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: Cultura Cristã, 2017.
[9] Ver: DIXHOORN, Chad Van. God’s ambassadors: the Westminster Assembly and the reformation of the English pulpit, 1643-1653. Grand Rapids, MI: Reformation Heritage Books, 2017.