IPB: História e Identidade
Curadoria dos Museus da IPB

Panorama da História da Igreja – A Igreja no Início da Idade Média (590-1073)

Inicialmente, cabem duas observações sobre o título desta seção. Em primeiro lugar, o mais correto seria dizer “A igreja na primeira metade da Idade Média”, pois o período indicado é de quase quinhentos anos. Em segundo lugar, o ano do final do período é um pouco diferente do que foi colocado na Introdução (1054). No final da leitura se verá o motivo. A Idade Média, que tem esse nome por estar entre a Idade Antiga e a Moderna (média = que está no meio), com frequência tem má reputação como a “idade das trevas”. Muitos acham que foi uma época em que só houve ignorância, superstições e retrocesso. Todavia, esse longo período da história também teve coisas altamente apreciáveis, especialmente na sua segunda metade, como será visto na próxima unidade.

O início da Idade Média coincide com o pontificado do grande bispo de Roma que foi Gregório Magno (590-604), considerado um dos “doutores da igreja” ao lado de Ambrósio, Jerônimo e Agostinho. Ele foi o primeiro monge a tornar-se papa. Foi um homem de grande integridade pessoal e um notável administrador cujas ações aumentaram o poder temporal do papado, ampliaram a ação missionária da igreja (como se verá adiante) e influenciaram o monasticismo e a liturgia católica (“canto gregoriano”). Gregório escreveu uma obra de teologia prática, Livro do Cuidado Pastoral, um manual de aconselhamento que foi muito utilizado durante toda a Idade Média. Cerca de trinta anos após a sua morte, houve um acontecimento de grande importância que afetou profundamente o cristianismo.

1. O SURGIMENTO DO ISLÃ

Esse acontecimento foi o surgimento, na Península Arábica, de uma combativa religião rival do cristianismo. O islã foi fundado por Muhammad ou Maomé (†632), um mercador de Meca, na atual Arábia Saudita, que em suas viagens teve muitos contatos com judeus e cristãos, sendo por eles influenciado em suas concepções religiosas. Uma dessas influências foi o rígido monoteísmo que caracteriza o islã, palavra que significa “submissão” à vontade de Deus (Alá). Seu livro sagrado, o Corão, faz muitas referências ao Antigo Testamento e considera Jesus um dos profetas de Deus, sendo Maomé o último e principal deles. O grande feito de Maomé foi unir as tribos árabes, que antes eram politeístas e viviam guerreando entre si, em torno dessa nova religião monoteísta.

Empolgados com sua nova fé, a partir de 632, ano da morte de Maomé, os exércitos muçulmanos começaram a conquistar todo o norte da África e o Oriente Médio. Foi uma trágica perda para o cristianismo, pois essas regiões haviam tido florescentes centros cristãos desde os primórdios da história da igreja. Entre os lugares conquistados estavam a Numídia, onde viveram Tertuliano, Cipriano e Agostinho; o Egito, lugar da Escola de Alexandria, com seus grandes luminares Clemente e Orígenes, e a Síria, onde havia florescido a Escola de Antioquia. Em 711, os maometanos atravessaram o Estreito de Gibraltar e invadiram a Península Ibérica (Espanha). Aliás, Gibraltar significa “rocha de Tarik”, numa referência ao comandante dos exércitos invasores. Assim, teve início uma presença muçulmana na Espanha que haveria de se estender por muitos séculos. Em seguida, os mouros atravessaram os Pirineus e entraram na França, mas foram finalmente derrotados pelo rei Carlos Martelo no ano 732, em Tours.

2. ATIVIDADE MISSIONÁRIA

A primeira metade da Idade Média caracterizou-se por intensa atividade missionária. Foi nesse período que se completou a evangelização ou cristianização da Europa, principalmente no Norte e no Leste. Como foi visto na unidade anterior, em 449 os anglos e os saxões haviam invadido a Britânia ou Bretanha. A população local, os bretões, foi expulsa para o ocidente da ilha. Os bretões eram cristãos (celtas), mas os invasores ainda eram pagãos. O papa Gregório I viu nisso uma grande oportunidade missionária e enviou para lá, em 597, um monge chamado Agostinho, acompanhado de 40 companheiros. Eventualmente, houve a conversão do rei Etelberto de Kent, cuja esposa, Berta, havia se convertido anteriormente. Agostinho tornou-se arcebispo de Cantuária (Canterbury). Com isso, passaram a coexistir na Inglaterra dois tipos de cristianismo: o antigo cristianismo celta e agora o catolicismo romano. A situação foi resolvida em 663, quando o Sínodo de Whitby unificou o cristianismo inglês sob a autoridade do papa.

Assim como no século 6º Columba havia fundado o centro missionário de Iona, no século 7º Aidano fundou um centro semelhante do outro lado da Escócia, em Lindisfarne. Porém, o mais extraordinário missionário irlandês foi Columbano (†c. 614), que pregou na França, na Alemanha e na Suíça, chegando até o norte da Itália. Na Frísia (atual Holanda) trabalhou Willibrord, que se tornou arcebispo de Utrecht em 695, e na vizinha Germânia (Alemanha) o inglês Bonifácio (680-755), o maior missionário do seu tempo. A Dinamarca e a Suécia foram evangelizadas pelo francês Ansgar (801-865), “o apóstolo do norte”. Já os primeiros missionários aos eslavos (Morávia) foram os gregos Cirilo e Metódio, no século 9º. Em todo esse longo período de desbravamento, os mosteiros realizaram um admirável trabalho nas áreas de missões, cultura e beneficência.

3. O IMPÉRIO DOS FRANCOS

Já vimos que os francos foram a primeira tribo germânica a abraçar o cristianismo católico, sob a liderança do rei Clóvis. Esse rei iniciou a dinastia dos merovíngios, que foi suplantada no século 8º por uma nova dinastia de líderes franceses, os carolíngios, o primeiro dos quais foi Pepino de Heristal. Como se viu, seu filho Carlos Martelo (714-741) derrotou os muçulmanos na batalha de Tours. O filho deste, o rei Pepino, o Breve (741-768), conquistou muitas terras no norte da Itália e as cedeu à igreja, dando origem aos estados papais, que haveriam de perdurar até o século 19. O governante seguinte, Carlos Magno, que reinou de 768 a 814, foi o maior monarca do período inicial da Idade Média. Coroado imperador pelo papa Leão III, em Roma, no Natal do ano 800, ele passou a governar o chamado Sacro Império Romano. Promoveu a cultura (no que ficou conhecido como o Renascimento Carolíngio), protegeu e controlou a igreja, e ajudou os papas. Após a ruína do antigo Império Romano, esse foi o primeiro governo da Europa ocidental capaz de impor ordem e paz, e desenvolver a civilização.

4. O IMPÉRIO GERMÂNICO

Após a morte de Carlos Magno, seus filhos não conseguiram manter o império unido. O centro do poder deslocou-se um pouco para leste, para o território da atual Alemanha, onde Oto I, o Grande (936-73), inspirado em Carlos Magno, foi coroado imperador pelo papa em 962. Surgiu assim o Sacro Império Romano Germânico, que foi o principal poder político da Idade Média e, por incrível que pareça, subsistiu até 1806! O império chamava-se sacro ou sagrado por ser cristão, abençoado pela igreja, e romano porque foi entendido como o ressurgimento do antigo império dos romanos. Esse império com frequência teve uma relação tumultuada com a igreja, interferindo em seus assuntos internos, inclusive a escolha dos papas. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se a ideologia de que o reino de Deus tinha dois representantes no mundo, o império e a igreja.

5. PERSONAGENS E CONTROVÉRSIAS

Como os períodos anteriores, também este teve vários personagens de destaque. Na Espanha, viveu o bispo Isidoro de Sevilha (c.560-636), considerado por muitos estudiosos o último dos pais da igreja ocidental. Na Inglaterra, viveu o monge conhecido como Venerável Beda (c.673-735), autor da importante obra História Eclesiástica do Povo Inglês. João de Damasco (c.675-749), outro destacado personagem desse período, é considerado o último e mais importante dos pais da igreja oriental. O inglês Alcuíno (735-804) foi conselheiro e uma espécie de ministro da cultura do imperador Carlos Magno. O período também foi marcado por algumas controvérsias teológicas das quais participaram indivíduos com nomes estranhos. Ratramno (†856) e Gottschalk (†868) defenderam a doutrina de Agostinho sobre a predestinação, sendo que o último foi preso e condenado, morrendo depois de vinte anos na prisão. Rabano Mauro (†856), João Scotus Eriúgena (†c.877) e Hincmar (†882) atacaram essa doutrina. Por sua vez, o monge beneditino Pascásio Radberto (†860) defendeu a presença real de Cristo na eucaristia (transubstanciação) contra Ratramno e Rabano Mauro.

6. A IGREJA ORIENTAL

Desde o período antigo, a igreja grega ou oriental foi enfraquecida pelas lutas teológicas, cismas e invasões muçulmanas (os árabes chegaram às portas de Bizâncio em 673). A igreja também sofreu por causa de suas estreitas ligações com o Império Bizantino. Os imperadores geralmente controlaram a igreja, fenômeno esse que ficou conhecido como cesaropapismo. Entre 726 e 843 ocorreu a célebre “controvérsia iconoclástica”, na qual vários imperadores tentaram impedir sem sucesso o uso e veneração dos ícones (quadros de Maria e dos santos). Como já foi apontado, o maior teólogo da igreja oriental foi João Damasceno, falecido em 749 e considerado um doutor da igreja. Inicialmente, ele serviu na corte de um califa islâmico; depois, abandonou esse serviço para ingressar em um mosteiro. João de Damasco produziu uma teologia considerada normativa para a igreja oriental, tendo articulado uma importante argumentação em favor dos ícones.

Desde os primeiros séculos manifestaram-se diferenças crescentes entre a igreja romana/ocidental e a igreja grega/oriental. Além do aspecto geográfico, linguístico e político, havia as diferenças mais profundas de cultura e mentalidade. Os gregos eram mais filosóficos, especulativos, daí a sua predileção por temas abstratos como o ser de Deus. Os romanos tinham mentalidade mais prática, daí seu interesse por áreas como a eclesiologia. Outro motivo para o afastamento foi a palavra Filioque (“e do Filho”). O Credo de Constantinopla (381) dizia que o Espírito Santo procede do Pai. O 3º Sínodo de Toledo, em 589, acrescentou a referida palavra ao credo. Na década de 860, o papa Nicolau I e Fócio, o patriarca de Constantinopla, excomungaram-se mutuamente por esse motivo. O problema maior sempre foi a reivindicação de autoridade universal pelo bispo de Roma. A ruptura final entre as duas igrejas ocorreu em 1054, quando Leão IX excomungou o patriarca Miguel Cerulário e este anatematizou o papa. De todo esse longo processo, resultou a Igreja Ortodoxa Grega, distinta da Igreja Católica Romana. Assim, a chamada ruptura da unidade cristã é muito anterior à Reforma Protestante.

7. DECADÊNCIA E REFORMA DO PAPADO

Do final do século 9º até meados do século 11, o papado tornou-se um joguete nas mãos de poderosas famílias romanas (como os Theophylact, os Crescentii e os Tusculani), experimentando a maior decadência da sua história. Todavia, a partir da fundação do Mosteiro de Cluny (910), na França, surgiu um partido reformador que eventualmente moralizou a alta administração da igreja. Esse movimento promoveu a reforma dos mosteiros e lutou contra três males: a simonia ou comércio de cargos eclesiásticos (ver Atos 8.18), o nicolaísmo ou casamento dos sacerdotes (ver Apocalipse 2.6,15) e as investiduras leigas, ou seja, a interferência dos príncipes na eleição e consagração dos bispos. A reforma do papado começou com Leão IX (1049-1054) e seu hábil conselheiro Hildebrando (c.1023-1085). No pontificado de Nicolau II, foi decidido que a eleição dos papas seria feita somente pelo colégio de cardeais (1059). Finalmente, em 1073 (ano final deste período) o próprio Hildebrando foi eleito papa, adotando o título de Gregório VII.

8. E AS ESCRITURAS?

Na Idade Média, as Escrituras eram lidas habitualmente apenas nos mosteiros, sendo pouco acessíveis para o povo. Havia várias razões para isso: a Bíblia só existia em latim, não tendo ainda sido traduzida para os diversos idiomas da Europa; não havia ainda a imprensa, o que fazia com que as cópias da Bíblia tivessem de ser escritas à mão, tornando-as muito caras para a maior parte das pessoas; além disso, a igreja não tinha interesse em que as Escrituras estivessem nas mãos das pessoas comuns, por temer que fossem interpretadas de maneira divergente do ensino da igreja, gerando ideias “heréticas”.

Todavia, foi muito importante o trabalho dos monges no sentido de preservar e reproduzir os antigos manuscritos bíblicos, o que faziam com muita arte e esmero. Além dos copistas peritos em caligrafia havia os iluministas, ou seja, os indivíduos que ilustravam os manuscritos com belos desenhos conhecidos como iluminuras. Em termos de hermenêutica ou interpretação bíblica, continuou a ser utilizado o método alegórico (busca de sentidos ocultos no texto), surgido nos primeiros séculos da história da igreja. O peso da tradição eclesiástica (os ensinos dos escritores da igreja, dos concílios e dos papas) foi se tornando cada vez mais influente para a fé e a prática da igreja.

IMPLICAÇÕES PRÁTICAS

O surgimento do islã e os danos que causou ao cristianismo mostram outro tipo de desafio que os cristãos têm enfrentado em toda a sua história: a realidade de outras religiões e o desafio missionário que representam. Como se observou, a parte inicial da Idade Média não foi só um período de perdas, mas de ganhos: perdas no norte da África e Oriente Médio, mas ganhos no norte e leste da Europa, graças aos esforços missionários empreendidos. Os problemas enfrentados e vitórias alcançadas nos dão importantes lições ao nos depararmos com os mesmos desafios em nossos dias.

A história desse período também evidencia o alto preço que a igreja pode pagar ao relacionar-se muito estreitamente com o estado. Essa relação quase sempre corrompe a ambos, embora quem mais perca seja a igreja, que não tens fins primariamente políticos, e sim espirituais. Não é desejável que a igreja esteja alheia às questões políticas ou sociais, mas que, a partir de uma postura de independência, exerça uma influência salutar sobre as instituições políticas, especialmente na área crucial da ética.

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