Introdução
- O Colóquio de Marburg, patrocinado pelo príncipe Filipe de Hesse, ocorreu em outubro de 1529. Os reformadores alemães e suíços concordaram em 14 pontos doutrinários, mas divergiram sobre a Ceia do Senhor.
- Ecolampádio, um dos companheiros de Zuínglio, disse: “Está claro que não fomos capazes de chegar a um consenso”. Acrescentou: “Vamos ao menos apertar as mãos porque somos irmãos”. Lutero respondeu: “Não, não posso apertar sua mão. Você é de um espírito diferente do meu”.
- Essa falta de harmonia entre os primeiros protestantes prejudicou o movimento e produziu uma divisão que permanece até hoje. Isso nos faz lembrar que a Reforma deixou um legado complexo e controvertido, composto de elementos positivos, a serem celebrados, e negativos, a serem lamentados.
1. Legado negativo
- As comemorações do aniversário da Reforma Protestante não devem ter um tom triunfalista, porque o movimento foi falho em muitos aspectos. Com humildade, devemos reconhecer as limitações da obra dos reformadores e aprender as lições que elas nos trazem.
- É importante conhecer alguns desses pontos fracos da Reforma, a fim de termos uma visão sóbria e equilibrada dos acontecimentos.
1.1 A ruptura da unidade cristã
- Um fato incontestável acerca da Reforma é que ela rompeu de modo permanente a unidade do cristianismo ocidental.
- Desde os primeiros séculos, os cristãos entenderam e proclamaram que a igreja era “una, santa, católica e apostólica”.
- Em primeiro lugar, vinha, pois, a unidade da igreja, conforme expressa de maneira sublime na assim chamada oração sacerdotal de Cristo: “Pai santo, guarda-os em teu nome, que me deste, para que eles sejam um, assim como nós… Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra; a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste. Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado, para que sejam um, como nós o somos; eu neles, e tu em mim, a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste, como também amaste a mim” (Jo 17.11b, 20-23).
- Os reformadores tinham um profundo respeito pela igreja histórica. Embora afirmassem a prioridade da igreja enquanto corpo de Cristo ou comunhão dos fiéis, eles não desprezavam a igreja institucional.
- Lutero nunca pretendeu criar uma nova igreja, muito menos uma igreja com o seu nome. Seu desejo era reformar ou restaurar a igreja na qual havia nascido e a qual servira por muitos anos. Foi só relutantemente, forçado pelas circunstâncias, que ele aceitou o surgimento de uma igreja distinta, evangélica.
- Ao mesmo tempo, a alegação de que a Reforma quebrou a unidade do cristianismo deve ser aceita com cautela. Como foi dito, ela o fez em relação ao cristianismo europeu ocidental, mas não ao cristianismo como um todo.
- Vários séculos antes já havia se consumado outra grande ruptura, muito maior, entre a igreja ocidental e a igreja oriental, entre a igreja católica romana e a igreja ortodoxa grega, sem falar em outras divisões menores, mas duradouras, como as igrejas coptas (monofisitas) e nestorianas.
- Na época da Reforma houve algumas tentativas de conciliar católicos e protestantes, sem sucesso. Eles não quiseram preservar a unidade ao custo da verdade do evangelho conforme a entendiam.
1.2 A ruptura da unidade evangélica
- Porém, a ruptura da unidade não foi só um problema de protestantes e católicos, mas dos protestantes entre si.
- O princípio de “Sola Scriptura” associado ao conceito do “livre exame das Escrituras” propiciou o surgimento de interpretações divergentes de pontos doutrinários no movimento protestante, sem uma autoridade a quem apelar em última instância, como no caso do catolicismo, com o papa e os concílios.
- As divergências protestantes não foram somente acerca das “adiáfora”, as coisas indiferentes, mas de questões fundamentais, como o entendimento dos sacramentos. Daí a ruptura já mencionada entre zuinglianos e luteranos no Colóquio da Marburg, em torno da Ceia do Senhor.
- Foi doloroso o que ocorreu em Zurique, onde os anabatistas usaram contra Zuínglio o mesmo argumento que ele havia usado contra Lutero. Zuínglio achava que Lutero não havia indo longe o suficiente em sua obra de reforma, de retorno às Escrituras. Entendeu que Lutero havia preservado convicções e práticas que não tinham respaldo na Bíblia.
- Os “irmãos suíços”, que inicialmente foram simpatizantes de Zuínglio, a certa altura começaram a alegar que ele estava fazendo a mesma coisa que condenava em Lutero, ou seja, mantendo práticas católicas: o batismo infantil e a aliança entre igreja e estado. Daí o surgimento de uma nova ruptura no movimento protestante. Agora havia luteranos, zuinglianos e anabatistas.
- Finalmente, os ingleses criaram a sua própria igreja protestante nacional, distinta dos movimentos continentais – o anglicanismo. A partir daí, as divisões se multiplicaram no protestantismo nos séculos seguintes até se chegar à situação atual. Surgiu assim o denominacionalismo que é tão característico do protestantismo.
- Uma tentativa de reverter esse quadro teve início a partir do movimento missionário do século 19. Os missionários que trabalhavam no terceiro mundo perceberam as dificuldades criadas pelas missões denominacionais: duplicação de esforços e prejuízo no testemunho aos pagãos. Isso levou a esforços de aproximação que resultaram no movimento ecumênico do século 20, com suas promessas e problemas.
1.3 Envolvimento político
- À exceção dos anabatistas, os protestantes do século 16 mantiveram o constantinismo da igreja católica, ou seja, a estreita associação entre igreja e estado, com o consequente estabelecimento de igrejas oficiais.
- Havia o entendimento, em grande medida justificado, de que, sem o apoio das autoridades civis, seria impossível implantar a Reforma. Daí o escrito de Lutero em 1520 apelando aos príncipes alemães para reformarem a igreja. Quanto ao movimento reformado, o mesmo aconteceu em Zurique, Genebra, Heidelberg, na Escócia, na Holanda e em outros lugares.
- No século 16 e 17 predominavam na Europa as igrejas estatais ou territoriais, fossem elas católicas ou protestantes. Na Alemanha consagrou-se o famoso princípio “cuius regio eius religio” (a religião do príncipe será a religião do território). Quem fosse adepto de uma confissão religiosa diferente teria de se mudar para outra região ou sofrer restrições legais.
- Com o passar do tempo, o excessivo envolvimento das igrejas protestantes com as estruturas políticas trouxe mais problemas do que benefícios, a começar da ingerência do estado nas questões eclesiásticas e religiosas, como ocorreu na Genebra de Calvino.
- Muitos governantes não eram verdadeiramente cristãos, mas estavam mais interessados nos benefícios políticos e econômicos que podiam derivar de seu apoio à Reforma.
1.4 Intolerância
- Um subproduto do envolvimento político das igrejas protestantes foi o uso da máquina estatal para reprimir os dissidentes, exatamente como o catolicismo romano vinha fazendo há séculos.
- O grupo que mais sofreu com essa intolerância foram os anabatistas, perseguidos severamente pelos católicos e até mesmo por outros protestantes, na Áustria, Suíça, Alemanha e Países Baixos.
- A razão para essa severidade era a preocupação com a ortodoxia, sendo os dissidentes qualificados como hereges. Certas posições doutrinárias consideradas especialmente lesivas para a fé, como a negação da doutrina da Trindade, tornavam os hereges passíveis de pena de morte, como aconteceu com Miguel Serveto em Genebra.
- As atitudes negativas podiam se estender a grupos não cristãos. Curiosamente, Lutero teve uma atitude bastante moderada em relação aos muçulmanos, que representavam uma séria ameaça para a Europa naquela época. Todavia, no final de sua vida, ele emitiu juízos extremamente negativos sobre os judeus, que mais tarde lhe valeram acusações de antisemitismo.
- A disciplina eclesiástica, bíblica e necessária para a saúde da igreja, podia se tornar excessivamente rigorosa entre os protestantes, como aconteceu em Genebra, onde o Consistório (pastores e presbíteros) tinha funções quase que exclusivamente disciplinares.
- Uma outra manifestação de intolerância ocorria na área verbal. Muitos escritos protestantes continham uma linguagem bastante rude e agressiva contra os adversários, como ocorreu nos embates entre luteranos e calvinistas.
- Tudo isso mostra como foi difícil para os primeiros protestantes se libertaram de muitos condicionamentos culturais que haviam herdado da tradição católica. Somente algumas gerações mais tarde ocorreu uma reflexão que produziu um ambiente de maior tolerância, respeito pelas diferenças e liberdade de consciência.
1.5 Guerras
- Outro efeito da Reforma que foi doloroso, mas até certo ponto inevitável, foram as guerras religiosas. Elas também foram uma consequência da forte dimensão política do movimento protestante e do clima geral de agressividade característico da época.
- Na Alemanha, um episódio lamentável foram as guerras entre os nobres e os camponeses, e os horríveis massacres que as acompanharam. Na Suíça, houve guerras entre os cantões protestantes e católicas. Como é sabido, o reformador Zuínglio pereceu num desses combates em 1531.
- É importante lembrar que a igreja católica foi quem mais promoveu essas conflagrações e se beneficiou delas, utilizando-as como um eficiente instrumento da Contrarreforma. Várias regiões da Europa alcançadas pela fé evangélica foram reconquistadas pelo catolicismo dessa maneira, como foi o caso da Polônia.
- Foi principalmente o caso da França, na qual as guerras religiosas do final do século 16 enfraqueceram seriamente o próspero movimento reformado naquele país. O episódio mais chocante foi o infame massacre do Dia de São Bartolomeu, que teve início em 24 de agosto de 1572.
- O período inicial da Reforma terminou com a devastadora Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), que envolveu vários países e deixou um horrível rastro de destruição e morte. Esses eventos contribuíram em muito para a atitude antirreligiosa dos iluministas do século 18.
2. Legado positivo
- Muito mais importante, duradoura e frutífera foi a herança positiva da Reforma. São essas contribuições construtivas e benéficas que estamos celebrando no transcurso dos 500 anos, e não, obviamente, o legado negativo.
- Uma imagem bíblica que vem à mente ao se considerar a Reforma e seus personagens é aquela utilizada pelo apóstolo Paulo em 2Coríntios 4.7: “Temos este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós”.
- Os reformadores foram homens muito imperfeitos e são ações nem sempre foram louváveis. Todavia, apesar da imperfeição dos instrumentos humanos, Deus abençoou o mundo com os frutos do seu trabalho.
- 2.1 Retorno à Escritura
- A Reforma foi, antes de tudo, um movimento de redescoberta da Bíblia. É claro que a Escritura era conhecida e estudada antes da Reforma, mas sua mensagem estava condicionada e relativizada pela tradição e pelos dogmas da igreja. Além disso, estava disponível na íntegra somente em latim e era pouco acessível aos fiéis leigos.
- Esse retorno à Escritura foi facilitado pela obra dos intelectuais do Renascimento, os humanistas. Seu lema era “ad fontes”, de volta às fontes, ou seja, os fundamentos da cultura ocidental. Entre essas fontes estava a Bíblia, que passou a ser estudada e analisada nas línguas originais.
- No que diz respeito ao Novo Testamento, uma contribuição importante foi a edição grega e latina publicada por Erasmo de Roterdã em 1516 (Novum Instrumentum). Essa primeira edição impressa do Novo Testamento no idioma original alcançou enorme popularidade. O interesse inicial foi mais histórico e literário, mas num segundo momento surgiu uma preocupação religiosa e doutrinária.
- Outra consequência do novo interesse pela Escritura foi o grande esforço de tradução para as línguas vernaculares da Europa. Na Inglaterra isso havia começado com João Wyclif mais de um século antes, com a produção da Bíblia de Oxford (1384). Agora, no início do século 16, graças à imprensa, foi possível a publicação de muitas edições da Bíblia nos diferentes idiomas europeus.
- Há séculos se discutia qual devia ser a principal autoridade para determinar a crença e a prática cristã. Os reformadores insistiram que tal papel pertencia à Escritura, e a ela somente – “sola Scriptura”. Essa afirmação se tornou o “princípio formal” da Reforma.
- Associado a isso estava um novo enfoque de interpretação bíblica, que veio a ser conhecido como método histórico-gramatical, ou seja, o estudo do texto no original, levando em conta o contexto histórico e a intenção do autor, e buscando o sentido natural das passagens, rejeitando a alegorização.
- Foi extraordinário o legado da Reforma no que diz respeito à Bíblia: como fundamento das doutrinas cristãs, como inspiração para o culto e a vida devocional, como norte para a ética cristã e até mesmo por sua influência na língua, literatura e cultura de um modo geral. Um bom exemplo disso foi a Bíblia Alemã, de Lutero.
- 2.2 Uma nova espiritualidade
- Uma das consequências da valorização da Escritura foi o redirecionamento da vida devocional. No âmbito do catolicismo, a espiritualidade, ou seja, o cultivo da vida religiosa, estava centrado na missa, nos sacramentos, nas orações prescritas, na devoção a Maria e aos santos, e em práticas como peregrinações, jejuns e penitências (boas obras).
- Os reformadores deram à vida devocional uma forte orientação bíblica e negaram o seu sentido meritório. O protestante cultuava a Deus não com a intenção de obter créditos ou bênçãos, mas com o objetivo de agradecer as suas dádivas, a começar da salvação em Cristo.
- Nos dois casos, a vida cristã era vista em termos de uma peregrinação, mas as intenções eram radicalmente diferentes. No catolicismo, tratava-se de uma peregrinação em busca da salvação; no protestantismo, uma peregrinação de quem já se sentia salvo e estava em busca de santificação.
- Os católicos alegavam que a salvação no entendimento protestante era fácil demais – bastava crer. Isso teria a tendência de produzir comodismo e negligência na vida cristã. Na perspectiva deles – fé e obras – o fiel era continuamente motivado a se esforçar na sua vida espiritual, porque disso dependia a sua plena salvação.
- Reagindo contra isso, Lutero afirmou que o indivíduo é justificado pela graça mediante a fé somente, mas não por uma fé que está só. Ou seja, a fé, sendo genuína, é acompanhada de boas obras que glorificam a Deus. Isso contrasta com o entendimento católico, que identifica santificação com justificação.
- A nova espiritualidade protestante se expressou tanto em âmbito coletivo quanto individual. O culto comunitário protestante passou a ser composto de cânticos, orações espontâneas, leituras bíblicas e, em especial, a pregação e a ministração dos sacramentos.
- A pregação ou o ministério da Palavra se tornou uma das marcas essenciais da espiritualidade coletiva protestante. Isso podia ter consequências positivas e negativas. A pregação, principalmente de natureza expositiva, passou a ter grande valor no sentido de alimentar o rebanho com as Escrituras.
- Negativamente, o sermão podia ser excessivamente longo, ou então intelectualizado e racional, gerando enfado e desestímulo para a vida cristã. Foi essa a crítica feita pelos pietistas (não “petistas”) alemães contra o formalismo luterano na época da ortodoxia protestante.
- A boa pregação cristã produzida pela Reforma, em particular na tradição reformada, certamente teve grande valor em nutrir uma espiritualidade bíblica, teocêntrica e frutífera ao longo de muitas gerações. Um dos melhores exemplos disso está na pregação puritana, com suas três características: expositiva, doutrinária e prática.
- Mas a Reforma também incentivou grandemente a espiritualidade familiar e individual, não só por meio da Bíblia e dos catecismos, mas de grandes clássicos devocionais como A viagem do peregrino, de John Bunyan.
- 2.3 Ênfase na educação
- É claro que o cristianismo vinha se preocupando com a educação desde o período antigo. Há muito tempo existiam escolas nos mosteiros e nas catedrais, várias das quais, a partir do século 12, deram origem às primeiras universidades. Nessas escolas, floresceu na segunda metade da Idade Média um método teológico fortemente influenciado pela filosofia – o escolasticismo.
- Os reformadores, interessados em que a Escritura fosse conhecida, estudada e proclamada, deram uma ênfase renovada ao ensino, a começar da educação religiosa dos fiéis. As igrejas protestantes passaram a dedicar grande atenção às atividades educacionais. João Calvino propôs para a igreja reformada de Genebra a existência de oficiais voltados especificamente para o ensino – os mestres ou doutores.
- As Ordenanças Eclesiásticas (1541) declaram no início: “Existem quatro ordens de ofício instituídas por nosso Senhor para o governo de sua igreja: primeiro pastores, depois doutores, presbíteros e diáconos. Consequentemente, se quisermos ter uma igreja bem ordenada e preservada, devemos observar essa forma de governo”. Mais adiante, declara: “O ofício próprio dos doutores é a instrução dos fiéis na verdadeira doutrina, a fim de que a pureza do evangelho não seja corrompida pela ignorância ou por más opiniões… Assim, para usar uma palavra mais compreensível, nós a denominaremos de ordem das escolas”.
- Um recurso valioso para alcançar esse objetivo foi a produção de catecismos, uma espécie de manuais ou guias para o estudo da Bíblia. O Breve Catecismo de Lutero (1529) é considerado uma de suas obras mais valiosas e influentes. A tradição reformada produziu uma série notável desses documentos, como…
- Os reformadores também se preocuparam com a chamada educação universal – escolas para todas as crianças e jovens. Lutero produziu dois escritos voltados explicitamente para isso: “Às autoridades de todas as cidades da Alemanha para que criem e mantenham escolas cristãs” e “Um sermão sobre manter as crianças na escola”.
- João Calvino criou em 1559 a Academia de Genebra, uma escola de nível primário, secundário e superior destinada à educação da infância e da juventude, à preparação de pastores e à formação de profissionais para atuarem em diferentes áreas da sociedade.
- Além disso, surgiu forte interesse pelo preparo dos ministros da Palavra. Em 1525, Ulrico Zuínglio instituiu em Zurique a Prophezei (Profecia, 1Co 14.1), uma escola de humanidades (línguas antigas, filosofia e matemática) e de estudo da Bíblia, com aulas diárias para pastores e leigos. Esse foi o princípio da educação teológica reformada. [Algumas décadas depois os puritanos iriam realizar seus “Prophecyings”, nos quais vários sermões sobre determinado texto eram apresentados e então analisados pelos presentes, sob a orientação de um moderador].
2.4 Influência na política
- Como foi visto, um dos aspectos preocupantes da Reforma, ainda que compreensível diante das realidades da época, foi o seu excessivo envolvimento com o poder secular. Todavia, a médio e longo prazo o movimento trouxe um impacto salutar sobre o âmbito da política e do exercício da cidadania.
- Seguindo a Escritura, Calvino tinha um elevado conceito acerca do estado e dos governantes civis (Rm 13.4: “ministro de Deus para teu bem”). Para ele, a carreira pública era uma das funções mais nobres a que um cristão podia aspirar e os cidadãos tinham o dever de obedecer as leis e honrar os magistrados. Por sua vez, os governantes tinham solenes e graves responsabilidades diante de Deus em relação às pessoas entregues aos seus cuidados.
- Muitos historiadores têm destacado o papel da Reforma no surgimento da democracia ocidental. Os próprios reformadores não foram exatamente democratas. Eles eram politicamente conservadores e teriam se sentido desconfortáveis com a moderna noção de democracia participativa.
- Lutero atribuía uma enorme autoridade aos príncipes, inclusive sobre a igreja, e Calvino favorecia uma forma de governo intermediária entre a monarquia e a democracia – a aristocracia, o governo de alguns indivíduos qualificados, como os conselheiros ou síndicos de Genebra.
- Em especial, os reformadores se debateram com o problema dos governantes tirânicos. Para Lutero, os cristãos deviam simplesmente se submeter aos déspotas. Deus devia ter algum propósito ao permiti-los. Calvino também era muito relutante quanto ao afastamento de um tirano de suas funções, principalmente por meio de insurreições populares. Somente os governantes inferiores teriam o direito de fazer isso, em casos de extrema necessidade.
- No entanto, os princípios da Reforma, e em especial as convicções e práticas do movimento reformado e do presbiterianismo, acabaram por contribuir fortemente para a formação das modernas instituições políticas.
- O princípio do “sacerdócio de todos os crentes” levou a uma participação sem precedentes dos fiéis na vida das comunidades protestantes. Eles não só elegiam os seus pastores e oficiais, mas podiam também ser eleitos para diversas funções na igreja. Essa ampla participação na vida eclesiástica se estendeu à sociedade mais ampla.
- Foi interessante o que ocorreu na Escócia. No século 17, o rei Carlos I tentou impor aos escoceses o anglicanismo com seu sistema episcopal. Os escoceses insistiram na manutenção do presbiterianismo e acabaram entrando em guerra contra o rei. Para eles, o sistema presbiteriano não era só um posicionamento religioso, mas político. Eles deram a entender que queriam uma igreja governada por líderes livremente eleitos pelos fiéis e não por bispos nomeados pelos reis.
- Dois fatores levaram os calvinistas a adotarem teorias mais democráticas: as perseguições sofridas na França, Inglaterra e Escócia, e o exemplo de Genebra, com o seu governo republicano. O direito de oposição aos tiranos, admitido apenas excepcionalmente por Calvino, foi defendido de modo explícito pelo francês Philippe Duplessis-Mornay, pelo escocês George Buchanan e pelo autor anônimo de Vindiciae Contra Tyrannos, obra popular entre os huguenotes franceses do século 17.
- Em suma, a teologia protestante e calvinista valorizou o indivíduo, colocado em uma relação pessoal com Deus e libertado da dependência eclesiástica. Na igreja, ele era convocado a colaborar com seus concidadãos na tarefa de governo e administração, a exercer o seu direito de voto com um forte senso de responsabilidade e a fazer a sua parte quando convocado para o serviço público, sendo ainda educado para exercer o direito de supervisão e até mesmo de crítica dos governantes.
- Além disso, a valorização do trabalho, as oportunidades de mobilidade social, o direito à livre iniciativa e o pleno acesso à educação, todos esses característicos do protestantismo, também foram fatores decisivos para o desenvolvimento da democracia no Ocidente.
2.5 Ética pessoal e social
- Os reformadores insistiram que a redescoberta da Bíblia e a restauração do evangelho à sua integridade original deviam ter profundas consequências práticas para a vida. Daí surgiu toda uma ética, um padrão de vida e conduta, tanto no plano individual quanto coletivo, tanto na atitude do indivíduo para consigo mesmo quanto para os outros.
- No aspecto pessoal, os protestantes passaram a caracterizar-se por uma vida ordeira, sóbria e disciplinada, evitando excessos e vícios, mas sem deixar de valorizar as alegrias e bênçãos da vida diária. O casamento e a família receberam um destaque que não haviam tido por muito tempo. O celibato deixou de ser considerado uma condição superior e privilegiada para a vida espiritual.
- O fim da distinção entre clero e laicato e a ênfase no sacerdócio de todos os fiéis influiu no conceito de vocação e na criação de uma nova ética do trabalho. Agora não só os “religiosos”, os ministros, eram considerados vocacionados, mas todos os crentes, mesmo no exercício de suas atividades e profissões “seculares”.
- Isso produziu a valorização do trabalho comum, visto como um meio de serviço a Deus e ao próximo. A valorização do trabalho, o interesse pela educação e um estilo de vida equilibrado contribuíram para gerar prosperidade para as famílias e comunidades protestantes.
- A tese da Max Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo (1905) pode ser questionada em vários aspectos, mas é inegável a existência de uma relação entre essas duas realidades.
- Porém, a ética protestante, no que teve de melhor, não produziu um comportamento materialista e egocêntrico sugerido pelo termo capitalismo. Antes, teve um forte componente de responsabilidade social.
- Isso ficou evidente principalmente na Reforma Suíça e, mais especificamente, no calvinismo. João Calvino fez uma rica reflexão em torno das inúmeras passagens do Antigo e do Novo Testamento que abordam temas como dinheiro, ricos e pobres e questões afins, propondo para a igreja e para os cristãos individuais uma conduta marcada pela solidariedade e pela generosidade.
- Indo além da mera reflexão, o reformador incentivou o ofício do diaconato e contribuiu para o surgimento de duas instituições sociais em Genebra: o Hospital Geral e a Bolsa Francesa. Ver o artigo “Amando a Deus e ao próximo: João Calvino e o diaconato em Genebra” (Fides Reformata, 1997-2).
- São incontáveis os frutos dessa preocupação derivada das Escrituras. Ao longo destes cinco séculos as igrejas e mais tarde as missões protestantes deram grandes contribuições humanitárias e sociais ao mundo. Ver o artigo de Robert D. Woodberry, “The missionary roots of liberal democracy” (American Political Science Review, maio 2012).