Graças à sua forte ênfase teocêntrica, a Reforma Protestante questionou o lugar reservado aos santos na espiritualidade católica romana. O novo movimento não viu problemas nos santos em si mesmos, e sim no culto associado a eles. Apoiando-se em textos bíblicos como as palavras de Jesus ao tentador (“Ao Senhor, teu Deus, adorarás, e só a ele darás culto” – Mt 4.10), os protestantes rejeitaram quaisquer atos devocionais dirigidos à mãe do Redentor, aos santos e aos anjos, e não exclusivamente à Trindade.
No entanto, os reformadores nutriram grande admiração e respeito pelos heróis da fé, os homens e mulheres que se destacaram ao longo da história, desde os tempos bíblicos, por sua integridade, piedade, coragem e altruísmo, servindo, assim, de exemplo e inspiração para os cristãos de todas as eras. É verdade que o Novo Testamento atribui o título “santos” a todos os seguidores de Cristo indistintamente, no sentido original de “separados”, “consagrados a Deus”, mas é inegável que alguns indivíduos se destacaram por encarnarem de maneira mais plena o ideal presente nesse termo.
Um exemplo eloquente, embora pouco conhecido no Brasil, é Robert Murray M’Cheyne (1813-1843), um ministro da Igreja da Escócia falecido aos 30 anos incompletos. Nascido numa família destacada de Edimburgo, ele foi o mais novo de quatro irmãos. Estudou na universidade local, onde ganhou prêmios de poesia, música e desenho. Nas horas vagas, entregava-se às diversões populares da época: jogos de cartas, danças e música. Em 1831, quando estava com 18 anos, a morte de um piedoso irmão mais velho, David, que havia orado muito por ele, foi, em suas palavras, “o primeiro golpe devastador no meu mundanismo”. No mesmo ano, sentiu o desejo de se tornar pastor e ingressou na escola de teologia da universidade local, onde experimentou a vigorosa influência de um grande líder da igreja, Rev. Thomas Chalmers.
A Igreja da Escócia (presbiteriana) vivia um despertamento que iria culminar na Ruptura de 1843, quando quase metade dos fiéis deixou a igreja oficial para formar a Igreja Livre da Escócia, de caráter mais evangélico. M’Cheyne foi licenciado como pregador em 1º de julho de 1835 e serviu como assistente do Rev. John Bonar em Larbert e Dunipace. Foi ordenado em 1º de novembro de 1836, assumindo o pastorado da recém-criada Igreja de São Pedro, em Dundee, importante cidade portuária do leste da Escócia.
O jovem ministro tinha uma saúde precária. Após dois anos de pastorado, começou a sentir fortes palpitações cardíacas e precisou repousar na residência dos pais. Em março de 1839, acompanhou Andrew Bonar e dois ministros mais velhos numa viagem à Palestina, da qual iria resultar uma missão aos judeus. Na viagem de volta, passando por Esmirna, na Turquia, ficou gravemente enfermo. Durante a sua ausência, escreveu longas e valiosas cartas pastorais ao seu rebanho. Em novembro, após um ano de afastamento, retornou à sua igreja em Dundee, tendo a grata surpresa de constatar que ela estava passando por um avivamento. A debilidade de sua saúde e a consequente consciência da brevidade da vida deram um agudo tom de urgência às suas pregações.
Em fevereiro de 1843, visitou o noroeste da Escócia e pregou 27 vezes em muitos locais diferentes, várias vezes viajando em meio a densa neve. Retornando à sua igreja, sentia-se muito cansado. Em 12 de março pregou seu último sermão, com base em Romanos 9.22-23. Dois dias depois falou a um grupo de crianças sobre o Bom Pastor. Naquela noite sucumbiu a uma epidemia de tifo que assolava a cidade. Em seus delírios febris, parecia dirigir-se a sua amada congregação. Faleceu no dia 25 de março, exatamente dois meses antes da divisão do presbiterianismo escocês. Atendendo ao desejo de seus consternados paroquianos, a família concordou com que fosse sepultado no cemitério anexo ao templo. Mais de 6.000 pessoas compareceram ao seu funeral.
Por que esse pastor falecido tão jovem, depois de apenas sete anos de ministério, é considerado um santo e tem impactado tantas pessoas até os dias de hoje? D. F. Kelly resumiu muito bem as suas qualificações: profunda santidade pessoal, vida de oração, ânsia pela salvação dos perdidos, poderosa pregação evangélica e aconselhamento incansável. Sua história extraordinária se tornou conhecida e perpetuada graças à tocante biografia escrita por seu colega e amigo Rev. Andrew Bonar. Seus sermões, cartas e poemas também têm sido objeto de muitas edições.
M’Cheyne é considerado um dos pregadores mais poderosos da história do cristianismo. Seus sermões, ao mesmo tempo doutrinários e práticos, eram nutridos por um cuidadoso estudo das Escrituras e pela leitura das obras dos reformadores e dos puritanos. Também gostava de ler biografias de grandes vultos, como Jonathan Edwards. Desde o início, imprimiu às suas prédicas uma tônica que perduraria até o fim – as pessoas precisam ser convencidas da gravidade do pecado antes que possam apreciar adequadamente a sublimidade da obra redentora de Cristo. Tinha grande paixão pela reconciliação dos pecadores com Deus e um interesse especial pelos pobres, que havia herdado de seu mestre Thomas Chalmers.
Outra característica saliente da sua vida foi a busca incessante da semelhança com Cristo e de uma profunda comunhão com o Todo-Poderoso. Escreveu a um colega: “Acima de tudo, cultive o seu próprio espírito. Sua própria alma deve ser seu primeiro e maior interesse. Busque progredir na santidade pessoal”. Dirigindo-se a um estudante, afirmou: “Gaste muito tempo na presença de Deus. Nunca veja a face do homem até que tenha visto a face daquele que é a nossa vida, nosso tudo”. Seu diário testifica sobre sua fulgurante trajetória espiritual: “Devo gastar as melhores horas do dia em comunhão com Deus. É minha atividade mais nobre e mais frutífera”. “Senhor, torna-me tão santo quanto um pecador perdoado pode ser”.
Por causa da intensidade e fervor desse homem de Deus, sua congregação ficava profundamente comovida só de vê-lo subir ao púlpito. Um editor sintetizou de maneira expressiva o impacto duradouro de Robert Murray M’Cheyne: “Um jovem que viveu na presença de Deus e levou aos homens um senso extraordinário dessa presença”.