Desde fevereiro de 2022, o mundo assiste perplexo à brutal agressão militar da Federação Russa contra a Ucrânia. Em pleno século 21, uma poderosa nação europeia (17 milhões de kms²) investe impiedosamente contra um vizinho pacífico e muito menor (600 mil kms²). Motivado por ambições pessoais e interesses geopolíticos, o autocrata Putin despreza as noções mais elementares de direitos humanos, ordenando a destruição de cidades inteiras e o bombardeio de alvos civis, resultando em grande número de vítimas fatais. Os crimes de guerra que estão sendo cometidos serão objeto de processos nos tribunais internacionais.
A jovem nação ucraniana, independente há pouco mais de três décadas, por vários anos vinha sendo assediada pelo vizinho imperialista, sedento de territórios e de influência em sua confrontação com o Ocidente. A Europa e os Estados Unidos impuseram pesadas sanções econômicas, que, todavia, não têm impedido a continuação dos ataques. Muitos países do hemisfério sul, dependentes de importações da Rússia, têm se calado ou expressado sua simpatia por esse país. Volumosos estoques de grãos ucranianos estão deixando de chegar aos mercados internacionais, contribuindo para a escassez de alimentos em nações pobres. Nos próximos anos, a guerra da Ucrânia poderá ter outras consequências ainda mais sinistras em termos mundiais.
Um fato pouco lembrado é que esse conflito também possui forte dimensão religiosa. A confissão majoritária nas duas nações é a Igreja Ortodoxa ou Oriental. A Ortodoxia tem suas raízes nos primeiros séculos da era cristã, no antigo Império Romano do Oriente, sediado em Constantinopla, a atual Istanbul, na Turquia. Com o passar dos séculos, ocorreu um progressivo distanciamento entre essa tradição cristã oriental, de língua grega, e a tradição ocidental, latina. Em meados do século XI (1054), consumou-se a ruptura entre as duas igrejas, Ortodoxa Grega e Católica Romana, esta última governada pelos pontífices e aquela pelos patriarcas de Jerusalém, Antioquia, Alexandria e Constantinopla.
A Ortodoxia ingressou no reino de Rus’ (uma parte da atual Ucrânia) no século X. O príncipe pagão Vladimir ou Volodymyr, de Kiev, enviou embaixadores a Constantinopla, os quais ficaram deslumbrados com a liturgia magnificente da Catedral de Santa Sofia. Os imperadores bizantinos Basílio II e Constantino ofereceram sua irmã Ana em casamento ao príncipe eslavo sob a condição de que ele fosse batizado, o que se deu no ano 988. Pouco depois, ocorreram as núpcias. Vladimir, cuja avó Olga havia se convertido antes dele, abraçou com sinceridade a fé cristã: desfez-se de seu harém, construiu igrejas, destruiu ídolos, aboliu a pena de morte, protegeu os pobres, viveu em paz com as nações vizinhas.
Quando a fé ortodoxa se estabeleceu em Kiev, Moscou não passava de um modesto povoado. Séculos mais tarde, ao se tornar a capital do reino (1325), o metropolitano de Kiev transferiu-se para lá. Moscou passou a ser o centro oficial da Igreja Ortodoxa Russa. No século seguinte (1448), a Igreja de Moscou declarou-se “autocéfala”, ou seja, autônoma, sendo essa cidade considerada a Terceira Roma. Após a queda de Constantinopla diante dos turcos (1453), o grande patriarcado da antiga capital do Império Romano Oriental entrou em declínio, ao mesmo tempo em que cresceu a influência de Moscou. Finalmente, em 1589, foi criado o Patriarcado de Moscou. Poucos anos depois, parte dos bispos de Rus’ se uniram a Roma, criando a Igreja Católica Ucraniana (Rito Oriental).
O Patriarcado de Constantinopla, sob cuja jurisdição a Igreja Ortodoxa da Ucrânia havia estado desde o século 11, consagrou nova hierarquia para essa igreja. Em 1686, com a contínua ascensão da Rússia, o metropolitano de Kiev passou para a jurisdição da Igreja de Moscou. Pouco depois teve início o reinado do poderoso Pedro, o Grande (1689-1725), que se intitulou “Czar de todos os russos”, nascendo a Rússia moderna. A Ucrânia foi denominada “Pequena Rússia”. Pedro tornou a Igreja Ortodoxa Russa a igreja oficial de todo o império, mas aboliu o patriarcado, substituindo-o pelo Santo Sínodo, atrelado ao governo.
A Igreja Ortodoxa Russa se tornou forte aliada dos czares. A partir de 1880, passou a perseguir duramente os grupos não-ortodoxos, especialmente os protestantes batistas que estavam se multiplicando no país. Com a Revolução Bolchevique (1917), a Igreja Ortodoxa é que passou a ser duramente reprimida. A queda dos czares trouxe esperanças para os ucranianos. Eles formaram um estado soberano e começaram a planejar um Igreja Ortodoxa autocéfala. Porém, os comunistas dissolveram com violência essa igreja. A única igreja a ser tolerada por eles, com grandes restrições, era a russa. Em 1988, ao ser celebrado o milênio da cristianização da Rússia, toda as atenções se voltaram para Moscou, e não para Kiev, o berço da Ortodoxia russa.
No início de 2019, no contexto de crescentes tensões entre os dois países, a Igreja Ortodoxa da Ucrânia se tornou autônoma de Moscou, fato que tem recebido violenta oposição tanto da igreja como do governo russos. Como nos dias de Pedro, o Grande, a Igreja Russa continua sendo usada pelo governo como um instrumento de “russificação”. O atual patriarca de “Moscou e de toda a Rus’”, Cirilo, cujo nome de batismo também é Vladimir, é forte aliado de Putin e, como ele, possuidor de grande fortuna. Assim, ironicamente, o atual conflito envolve três indivíduos com o mesmo nome histórico – Vladimir. Seria desejável que os dois povos também tivessem outra característica do personagem original: viver em paz um com o outro.