Ao publicar suas 95 teses sobre as indulgências, o monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546) não imaginava estar iniciando um movimento que seria tão vasto e revolucionário. O reformador havia abraçado a vida monástica em 1505 e dois anos mais tarde foi ordenado sacerdote. Ingressando na recém-criada Universidade de Wittenberg, bacharelou-se em teologia em 1509 e conquistou o doutorado em 1512. Logo a seguir, tornou-se professor de exegese bíblica nessa nova instituição. Ao longo dos anos, influenciado pelo estudo da Bíblia, de Agostinho e de pensadores e místicos medievais, bem como por suas angustiosas experiências pessoais, ele chegou à conclusão de que a salvação era “um novo relacionamento com Deus, baseado não em obras meritórias humanas, mas em absoluta confiança na divina promessa de perdão por meio de Cristo” (Williston Walker).
O monge alemão surpreendeu-se com as intensas reações às 95 teses. Somente dois meses antes, em setembro de 1517, ele havia escrito um documento muito mais contundente – 97 teses contra a teologia escolástica e a concepção sinergística da salvação. Nos dois anos seguintes, à medida que a hierarquia católica romana adotava atitudes cada vez mais repressivas contra ele, seu pensamento evoluiu e se cristalizou. Em junho de 1520, o papa Leão X publicou a bula “Exsurge Domine” condenando suas ideias e dando-lhe dois meses para se retratar ou ser excomungado. Foi nesse contexto que, há pouco mais de 500 anos, Lutero escreveu três obras de impacto profundo e duradouro.
Em agosto, veio a lume o tratado À Nobreza Cristã da Nação Alemã, que logo alcançou enorme publicidade (a primeira grande tiragem se esgotou em duas semanas). Lutero argumentou que as três “muralhas” sustentadoras do poder papal estavam ruindo. A primeira delas, a suposta superioridade da esfera espiritual sobre a esfera temporal, carecia de fundamento porque todos os fiéis são sacerdotes em virtude do seu batismo. A realidade do sacerdócio universal também lançava por terra a segunda muralha, a do exclusivo direito papal de interpretar as Escrituras. O mesmo acontecia com a terceira, a alegação de que somente o papa podia convocar um concílio reformador. Aduzindo exemplos da história da igreja, Lutero insistiu que tal concílio devia ser convocado pelas autoridades civis (a “nobreza cristã”), e propôs um programa prático de reforma.
Dois meses depois, Lutero redigiu em latim O Cativeiro Babilônico da Igreja, um documento de alta relevância teológica no qual questionou a doutrina sacramental romana. Para ele, o papado era o reino da Babilônia que tinha levado a igreja para o cativeiro, afastando-a das Escrituras. Limitando o termo “sacramento” às promessas de perdão associadas a um sinal visível, o reformador argumentou à luz do Novo Testamento que Cristo só instituiu duas dessas ordenanças: o batismo e a Ceia do Senhor. Embora atribuísse um valor pastoral à penitência, negou que a Escritura lhe conferisse um status sacramental, o mesmo ocorrendo em relação à confirmação, ao matrimônio, à ordenação e à extrema unção. No mesmo tratado, criticou três formas de cativeiro no que diz respeito à Eucaristia: a supressão do cálice aos leigos (comunhão em uma espécie), a transubstanciação dos elementos e o ensino de que a missa é uma boa obra e um sacrifício. Para ele, a Ceia do Senhor era uma promessa de remissão de pecados feita aos fiéis por Deus e confirmada pela morte de seu Filho. Não era uma oferenda a Deus, mas uma dádiva de Deus, a ser recebida com fé e gratidão.
No final do ano, o reformador redigiu um texto de tom mais sereno e conciliador, porém não menos impactante – A Liberdade do Cristão. O tratado inicia com um célebre paradoxo da vida cristã (inspirado em 1Co 9.19): “Um cristão é senhor livre sobre todos, e não sujeito a ninguém; um cristão é servo perfeitamente obsequioso de todos, e sujeito a todos”. Os crentes são livres porque justificados (aceitos por Deus) mediante a fé somente, não mais sujeitos à lei das obras e possuidores de uma nova relação pessoal com Cristo. São servos porque compelidos pelo amor a harmonizar suas vidas com a vontade de Deus e a servir aos seus semelhantes. O prefácio desse opúsculo foi uma carta aberta ao papa Leão X, uma última tentativa de diálogo construtivo.
Nos meses seguintes, uma série de acontecimentos dramáticos selou a ruptura final com Roma: em 10 de dezembro, o reformador queimou cópias da bula “Exsurge Domine” e do direito canônico; em 3 de janeiro de 1521, veio a lume a bula de excomunhão (“Decet romanum pontificem”) e em 17 de abril Lutero compareceu diante do imperador e do parlamento na Dieta de Worms, sendo formalmente condenado como herege. Porém, o fato mais importante é que, em fins de 1520, estavam definidos, ainda que de forma parcial, alguns dos principais fundamentos teológicos da Reforma, uma verdadeira reafirmação do cristianismo apostólico: a autoridade suprema da Escritura, o sacerdócio de todos os fiéis e a justificação pela graça mediante a fé somente.
É por isso que esses documentos são tão fundamentais: eles ilustram a contribuição mais valiosa e substancial do novo movimento. Não se tratava simplesmente de um retorno à Bíblia, que já vinha sendo lida e estudada ao longo da Idade Média, mas do resgate de sua mensagem central: o evangelho, as boas novas da graça de Deus Pai, concretizada na obra redentora do Filho e comunicada ao ser humano pelo Espírito Santo. Esse retorno à proclamação apostólica original é indispensável a toda a cristandade, inclusive a muitas igrejas protestantes que têm se afastado dolorosamente desses fundamentos. Só assim os cristãos poderão oferecer algo verdadeiramente singular aos tempos angustiosos e carentes de esperança em que vivemos.